sábado, 31 de julho de 2010

A Lista Maldita

Que outros se jactem das páginas que escreveram;

a mim me orgulham as que tenho lido.

                                              Borges



Sempre acreditei no indivíduo e não no coletivo. Isso não quer dizer, contudo, que eu acredite no individualismo. Não é isso. Nenhuma sociedade chegou a evoluir, e por isso mesmo revolucionar seus antigos preceitos, graças a ações fomentadas no seio do coletivo. Não, foi o indivíduo, essa força deslumbrante da Natureza quem rompeu com os grilhões que o esmagava, doando-se ao coletivo que tinha a partir de então uma referência superior, um novo modus operandis capaz de guiá-lo e conduzi-lo, ou não, às suas aspirações superiores. O mundo é um lugar interessante e está cheio dessas almas capazes de solidificar suas vontades sobre todo um bloco concreto denominado coletivo. E isso somos obrigados a afirmar mesmo em frente ao mais irascível materialista ou revolucionário, seja lá o que esses dois termos possam significar. Se nossa teoria repercutir de forma negativa, somos obrigados a evocar as figuras de Marx, Mao, Fidel, Lenin, Guevara e Stalin que são a imagem invertida deste espelho sublime que é o indivíduo pleno de si mesmo. Tudo o que é pleno em si mesmo é luz e transformação.

Foi imbuído com esse espírito longevo que cheguei à casa de Delanno. Sua esposa, Maria de Lourdes, recebeu-me com seu irredutível bom humor, solícita por natureza e dona de um sorriso esparso.

- Seja bem-vindo, caríssimo Carlos. Delanno o espera na sala assim como os outros convivas.

Que vocabulário maravilhoso! Agradeci e segui para a sala. A casa de Delanno ficava encravada na beira-mar. Imensos e preguiçosos coqueiros engalanavam aquela paisagem tropical, quente, convidativa ao descanso e sono. A casa era suntuosa, extremamente branca e limpa. Assim que adentrei a imensa sala de madeira, todos me saudaram com entusiasmo.

- Caríssimo Carlos. Que prazer imenso! – falou o anfitrião.

De certa forma, eu me sentia envergonhado com tanta cerimônia. Cumprimentei a todos com o mesmo entusiasmo e alegria: Pablo Castilha, o professor de grego; Ana Andaluzia, a pianista; Fernando Pers, o contador; Allejandro Florêncio, o arquiteto; Joaquim Esteván, o geólogo; Ana Maria FuenteNueva; a pintora cubista; George Graquillos, o representante do Partido; Tatiana DeRyhs; judia e mitóloga e, por fim, eu mesmo inserido nesse contexto surreal.

- Saudações calorosas a todos! - Eu era bom com as palavras. Havia sido educado, polido e, o que era mais importante, havia economizado um tempo enorme.

Ficamos conversando amenamente durante todo o início daquela noite infernalmente quente. Castilha bebia o vinho tinto que era servido com tanta fúria que suas palavras pareciam começar a saltar de seus lábios. DeRyhs servia-me pequenas porções de queijo argentino como se estivesse colhendo o néctar dos deuses.

- É, absolutamente, a coisa mais deliciosa que já saboreei em toda a minha vida.

Achei que esse culto exacerbado ao paladar era um pouco descabido, mas não gosto de julgar aos outros e, por isso mesmo, permaneci em silêncio. Ela, por seu turno, atacava os petiscos como se esses fossem desaparecer a qualquer instante. Todos os outros convivas – para usarmos a expressão da senhora Delanno - pareciam, assim como eu, satisfeitos com a festa. Como é agradável encontrar pessoas sadias, civilizadas e inteligentes para compartilhar uma noite dionisíaca como aquela.

Foi por volta da meia-noite que o próprio senhor Delanno veio nos anunciar que o jantar estava sendo servido e pedia a todos para que se dirigissem à mesa. Seguimos com entusiasmo para a imensa mesa de mogno que dominava sua sala de jantar. Sentados, todos a postos, esperávamos o jantar conversando sobre temas – ao menos para mim – de uma estranheza ímpar. Discutíamos sobre riqueza, miséria, revolução, políticos, partidos e fidelidade, situações econômicas e financeiras de vários países, possíveis soluções, meandros do mercado, conjuntura internacional e não sei o quê mais. O jantar surgiu de súbito e nem mesmo aquela dádiva da cozinha mexicana foi capaz de corroer a falácia intempestiva dos convivas – novamente a senhora Delanno. Tudo ia muito bem quando o velho Allejandro teve uma idéia diabólica.

- Senhoras e senhores – falou de seu posto – Proponho uma discussão das mais interessantes

- O que é, Allejandro? Vamos, diga-nos – implorou a boa senhora FuenteNueva.

- Bem, Ana, sei que todos aqui são pessoas letradas e que não há conhecimento na terra que não possamos discutir ou emitir uma opinião adequada. Proponho, então, que cada um diga em boa voz quais são os dez livros mais importantes de suas vidas.

Todos aplaudiram tal iniciativa de maneira entusiástica. Eu, de minha parte, sabia que estava perdido. Que idéia mais absurda. Isso era mexer com a pior ferida do ser humano: sua vaidade!

- Como anfitrião – disse o gracioso Delanno – sugiro que você mesmo, ó bom Allejandro, inicie essa maravilhosa lista.

Maravilhosa? Não era possível que ninguém ali percebesse o equívoco que poderia residir nessa brincadeira. Mas, mesmo assim, surda aos meus apelos silenciosos, a brincadeira começou. Um por um, cada conviva – aqui não vou mais citar a bondosa senhora Delanno – elaborou sua bendita lista. Marx, Hegel, Gramsci, Trotsky, Engels, Adorno, Marcuse, Foucault, Althusser, entre tantos outros, foram citados e celebrados como os arautos da única e bendita verdade. Eu estava perdido, repito. O ciclo foi se fechando por mais que eu me esquivasse. Quando todos já haviam emitido suas opiniões e comentários, pediram-me que elaborasse minha lista. O calor, o vinho, o excesso de comida talvez afetasse o julgamento de meus doces amigos. Pedi para não participar daquela brincadeira, pois naquela hora eu deveria estar sofrendo de um lapso de memória.

- Não, de forma alguma. Você vai participar, sim – arrematou Castilha.

- Isso mesmo. Vamos, homem, diga sua lista – sentenciou Andaluzia.

Vi-me encurralado qual um animal estúpido. Sei que sou humano e, portanto foi inevitável que minha vaidade falasse mais alta e dominasse todos os meus pensamentos. O som dos violinos que emergiam do aparelho de som conseguia colocar-me ainda mais em estado de alerta. Eu deveria enfrentar aquilo de uma forma ou de outra.

- Está bem – falei calmamente – Aí vai.

Todos aplaudiram minha decisão e ficaram em silêncio. A lista que eu falei foi a seguinte:



O Nuctemeron de Apolônio de Thyana;

Mysterium Magnum de Jacob Boheme;

O Sêfer Yetsirá;

Kabbalah Denudata de Rosenroth;

A Doutrina Secreta de Blavatsky;

Ulisses de Joyce;

A Divina Comédia de Dante;

Inferno de Strindberg;

A Odisséia de Kazantzákys e

O Processo de Kafka.



Mas dez era um número impossível aqui. Nada de Agrippa, Sartre, o Ser e Tempo de Heidegger, Valla, Plotino, Borges, Kant, Nietzsche e suas maravilhas, a própria Bíblia, meu Deus, eu havia esquecido a Bíblia, o Alcorão, os Vedantas, o Caibalion, Milton, Stevens, Frazer, Strauss, Jung, Malinowski, Chaucer e Goethe. Ainda residia um universo lá fora. Senti-me um traidor. Dez, nesse caso, era uma heresia. Porém, como era esperado, minha lista causou furor. Não havia nenhum brasileiro, nem mesmo Castro, Cunha, Freire ou Nassar. Que tristeza!

- Isso é a lista mais burguesa que eu já vi em toda minha vida – praguejou minha adorada anfitriã.

- Concordo plenamente – aduziu o velho e bom Esteván.

- Isso deve ser uma piada de mau gosto, não, meu caro? – questionou-me Graquillos.

- Não, estou falando sério. Mas ainda há tantos escritores que eu deveria render minha sincera homenagem.

O resultado foi pior do que eu esperava. Todos pareciam enfurecidos com minhas palavras.

- Seu burguês estúpido – praguejou novamente Esteván.

- Isso é uma insânia – assomou o transtornado Pers.

Repito, todos pareciam lunáticos insaciados, loucos por sangue.

- Calma, pessoal – tentei abrandar os ânimos que estavam mais do que exaltados – Só falei o nome de dez obras e nada mais. Só isso.

- Só isso?! Seu burguesinho, seu almofadinha – berrou meu anfitrião – Você deve estar louco ao dizer “só isso”!

Que fúria e que mau hálito!

- Pelo amor de Deus – eu implorei – Tenham calma.

Um alvoroço infernal já estava instalado. Foi quando levei uma tapa na cara. Surgiu do nada, aquela mão. Um pouco de sangue começou a escorrer de meu lábio inferior.

- Calma, pessoal – tentei argumentar – Assim vocês estão se excedendo.

Que sentimento de estranheza quando aquela faca perfurou meu abdômen. Não sei como aquilo ocorreu, mas era certo que a fúria assomava-se ao vinho, ao calor e ao excesso de comida. Somos seres muito frágeis ainda. Tombei no chão e em vez de receber socorro só escutei impropérios e mãos que estalavam com fúria no meu rosto ensanguentado. Será que havia alguma explicação para o que estava ocorrendo? Talvez uma, duas, três horas, não posso dizer com certeza, mas o certo era que aquele martírio, emoldurado por gritos, ganidos, gemidos e estertores de ódio levou todos a um estado mental tão alterado que ninguém mais se reconhecia. Foi quando gritaram.

- Ele está morrendo! Ele está morrendo!

Pensei que eu estava salvo e que a razão iria voltar às suas mentes. Mas, novamente, eu estava enganado. Ergueram-me, um mar de mãos, e conduziram-me para a praia. Os gritos e as tapas não cessavam. O corte aberto em meu abdômen expelia mais sangue do que eu poderia suportar. Seguiram esse ritual macabro até me lançarem na areia. O mar, sombrio e gélido, umedecia meus cabelos. Meus lábios estavam encharcados de sangue e areia.

- Por favor, ajudem-me – implorei.

Os gritos de burguês, estúpido, facínora e assassino cortavam o ar com fúria. Deixaram-me sozinho, envolvido com meus pensamentos e minha morte. Provavelmente iriam voltar ao delicioso jantar mexicano. Era um fato, eu não poderia culpar ao calor, ao vinho ou à comida por meu infortúnio. A Lua, em silêncio, parecia zombar de mim.



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