domingo, 25 de julho de 2010

O bebedor de chá

Um homem dividido é um homem fraco. Esta frase não é minha e, na verdade, só cheguei até ela após uma experiência bastante singular. Muitas vezes nós somos assaltados pela nítida impressão de que todo o mundo é falso e de que nós mesmos não passamos de impostores. Evidente que tal sentimento não é muito agradável. Foi exatamente para tentar livrar-me desse incômodo involuntário que decidi visitar meu amigo Simon em sua pequena casa à margem do São Francisco.

Nossa amizade estava calcada em conhecimentos tão abstrusos e surreais, que muitas vezes eu me perguntava de onde ele retirava tantos conhecimentos sutis sobre a realidade e que para a maioria das pessoas era algo totalmente desconhecido ou simplesmente impossível de ser cogitado. Crédulo é aquele que acredita em tudo o que lhe é dito: assim, pensava eu, a humanidade quase toda era muito crédula ao acreditar que esse mundo só poderia ser dessa forma como ele era imediatamente apresentado ou apreendido pela experiência adquirida na infância. Quando colocamos um par de óculos escuros e percebemos e apreendemos a realidade sobre um prisma completamente novo – nesse caso apenas nossa consciência enquanto realizadora da função de protetora do mundo estático em si ergue-se para que o movimento possa ser composto e subentendido – divisamos um novo foco sobre algo de há muito conhecido.

Mas, e aqui surge um impasse, o que indica essa percepção única como fator decisivo de minha escolha por um modelo de realidade? Nossa tendência natural à segurança nos torna conservadores. A própria Natureza é conservadora: porém aqui a indicação é daquilo que conserva a si mesmo enquanto existente. Nós conservamos nossa realidade através de um esforço descomunal de repetições, consolidações e impessoalidade. Tal processo é deveras salutar e é exigido pelo próprio mundo. Se não fosse assim, simplesmente não haveria mundo. O que me intrigava, contudo, era imaginar a simples possibilidade de conhecer outro mundo superposto a esse meu velho mundo conhecido. Eu precisava de um par de óculos escuros para transfigurar a realidade e conhecer suas diferentes nuances. Meu anseio de saltar essa credulidade me colocava imediatamente num impasse.

Foi assim, impulsionado por uma busca bastante diversa, que parti ao encontro de meu amigo Simon em sua pequena casa à margem do São Francisco. Minha decisão era muito pessoal e por isso mesmo eu fui obrigado a partir sozinho. Numa noite de um céu aberto e revestido de infinitas estrelas, parti do Recife num ônibus que balançava sua carcaça deformada por uma estrada sem luz alguma e que sempre seguia em linha reta. Na estrada, meus pensamentos sempre se tornavam ágeis, fluindo com retidão de um campo mental a outro. Minhas costas doíam um pouco devido ao desconforto acentuado dos bancos.

Cerca de oitocentos quilômetros me separavam da casa de meu amigo e a viagem seria longa. Acendi um cigarro e enquanto a fumaça era expelida eu divisava o céu dominado por luzes eqüidistantes e a iluminação sempre confusa do interior do ônibus. Essa tortura voluntária durou até o outro dia de manhã. Numa estação rodoviária perdida no meio do nada, vi-me envolvido por um frio que cortava meu sistema nervoso com ferocidade, obrigando-me a vestir um casaco italiano de lã. Assim que coloquei o casaco, lembrei-me de Marutza, aquela doce criatura européia que havia me presenteado com uma vestimenta tão insólita para mim, mas que agora adquiria sua conformidade mais própria com a realidade. A imensidão do sertão e sua gritante falta de vegetação despontavam ante meus olhos.

A estação era simplória. Segui até um pequeno restaurante situado em seu interior. Mesas de madeira, uma televisão ligada e alguns homens em chapéus de feltro sorviam café e comiam em silêncio. Acheguei-me ao balcão, esfreguei as mãos com decisão e encarei um senhor de barriga volumosa e olhar doentio.

- Eu gostaria de um café com leite, pão com manteiga e um pouco de queijo, por gentileza.

- Só um momento – ele disse enquanto olhava fundo em meus olhos como se quisesse descobrir algum segredo. Fiquei um pouco constrangido com sua insistência em encarar-me, mas logo percebi que aquela atitude compunha o modo de ser de todos os habitantes daquele lugar. Após breves minutos eu já estava devidamente sentado e sorvendo meu café com leite. O pão era velho e o queijo parecia saído de alguma privada. Preferi comê-los sem pensar em seu conteúdo mais aparente. Paguei, acendi um novo cigarro e segui até uma estrada asfaltada.

Sob um sol devastador – o frio havia se dissipado e apenas um calor que trucidava qualquer esperança de vida dominava a região - decidi retirar meu casaco, colocando-o em minha pequena bolsa de viagem. Senti o vento em meu rosto e isto aumentou minha sensação de estar vivo, compartilhando cada momento de vida com o mundo. Na estrada asfaltada – na verdade a única que cortava todo o sertão – estacionei meu corpo numa estação improvisada onde tomei uma caminhonete bastante velha que me conduziria ao meu destino final. Alguns velhos comiam farinha ao meu lado enquanto senhoras de longos vestidos pareciam absortas com suas próprias vidas. De início senti-me um estranho entre aquelas pessoas, mas quanto mais adentrávamos o coração daquele deserto mais um sentimento de propriedade e estabilidade dominava-me. A imanência latente da vida que circundava o deserto aproximava-me de sua personalidade conquanto eu estivesse apto a circunscrevê-lo ante minha consciência como um ser vivo. Quando avistei o rio ao longe e suas pequenas montanhas tomadas por nuvens ligeiras, dei um salto, agarrei minha mala e gritei ao motorista:

- Desce aqui! – minha voz parecia adormecida por séculos.

O veículo parou, revelando a sofreguidão de sua ferragem e a impotência de seu motor. Agradeci ao motorista e segui por uma estrada de barro que levava à casa de meu amigo. Quando eu já me aproximava de seu lar, dei-me conta de que minha mala havia desaparecido.

- Será que a deixei na caminhonete? – perguntei-me sabendo que não haveria resposta.

A vegetação começou a adensar-se paulatinamente, compondo um quadro mais denso, eclipsado em seu deserto por arbustos cinzas e árvores com pele de espinhos. Senti um leve tremor em meu corpo: será que havia algo a ser temido naquele lugar? Tal inquietação afigurava-se estranha, uma vez que eu já conhecia aquele caminho. O que chamava minha atenção é que eu jamais havia notado a presença daqueles arbustos e árvores tão espectrais cercando o caminho que levava à casa de Simon.

De súbito, uma sede intempestiva elevou-se, atingiu uma culminância tão despótica que eu pensei que aquilo só poderia ser próprio de algum pesadelo. O clima de extrema aridez acentuava minha sede. Pensei em corais, arrecifes e um mar de ondas corrompidas pelo azul do próprio céu. De um horizonte que dragava em seu refúgio mais secreto todo o universo, algo produzia essa sede ingente que trafegava sorrateira por todo o meu corpo. Só um copo de água era o que eu parecia implorar. Não sei até que ponto a insolação ou a falta de água pode causar uma ilusão ante a mente. O que me espantava era o fato gritante de tal sede emergir do nada e alojar-se com tamanha potência em algum local que eu mesmo não conseguia visitar. Tentei me controlar: respirei profundamente, acendi um cigarro e segui minha caminhada que parecia jamais terminar. Aquela sede heteróclita usurpava meus pensamentos, condenando-me ao seu poder decisivo, o que acentuava a decadência quase espontânea de minha vontade. O cigarro causava-me náuseas e o caminho parecia uma estrada sem fim. Comecei a correr desesperadamente em direção à casa de Simon cujo telhado sempre vermelho de terra eu pude divisar com segurança. Quando cheguei à porta de sua casa percebi que alguém estava deitado numa rede posta displicentemente no terraço. Subi alguns degraus que conduziam ao alpendre. Vi o próprio Simon deitado na rede calmamente. Sua expressão parecia muito tranqüila e isso, de fato, contrastava com minha angústia.

- Preciso de água – implorei.

Ele parecia já saber de meu desespero.

- Você vai encontrar água na cozinha – ele indicou.

Saí correndo para a cozinha. Não sei até que ponto aquela sede intempestiva conseguiu dominar minha realidade, mas cheguei a imaginar que algumas meninas estavam fazendo sexo de forma desesperada em dois quartos mal iluminados da sala. Na cozinha, abri a geladeira e tomei duas garrafas de água de uma só vez. Minha surpresa foi muito maior quando minha sede, em vez de saciada, revolveu-se com violência, aumentando seu diâmetro. Uma menina de longos cabelos vermelhos surgiu na cozinha.

- Beba essa vasilha. Tem bastante água aqui - sua voz pareceu-me transtornada.

Verti todo o conteúdo da enorme jarra, mas minha sede parecia intransigente e decidida a habitar em meu corpo para sempre. Retornei ao terraço onde o velho Simon continuava balançando-se em sua rede com a maior tranqüilidade deste mundo.

- Simon – implorei – ajude-me. Estou consumido por uma sede terrível. Acho que vou morrer. Ajude-me. Ajude-me, por favor, faça algo para me salvar – minha voz implorava. Minha dignidade fora lançada ao espaço. Eu deveria parecer o homem mais patético do mundo, já que meu amigo não desfazia seu ar de tranqüilidade nem seu sorriso sempre largo.

- Nana está lá no quintal. Ela tem algo para você – sua voz soou como uma ordem. No meu desespero que se agigantava mais e mais, eu não tive dúvidas e sai correndo para o quintal de sua casa.

Alguns pés de pequi, com suas folhas esverdeadas, tomavam o quintal e escondiam o rio que serenava em seu curso milenar. Uma horta caseira coleava-se numa ordem singular: milho, feijão, café e plantas medicinais. Minha sede já havia me tomado de pânico; domava meus pensamentos e jogava-me de lá para cá como se eu fosse apenas um instrumento de sua existência voraz. Haveria algo capaz de me saciar? Consegui vislumbrar a silhueta esguia de Nana à sombra do pé de pequi.

- Nana – gemi – ajude-me. Estou morrendo de uma sede monstruosa! Ajude-me! Por favor, ajude-me! – eu me humilhava e não sabia disso.

Ela olhou em meus olhos e esboçou um sorriso de compreensão e compaixão. Meu estado deplorável não parecia lhe indicar nada de especial ou, ao menos, a necessidade de tomar uma atitude mais enérgica.

- Fique calmo – ela me disse, tentando serenar meu desespero – Será que você não sabe que não devemos colocar nosso destino nas mãos dos outros?

Sua voz suave e o poder de suas palavras estagnaram o tempo ante minha mente. Minha visão turvou-se e sua silhueta, antes tão bem definida e segura, parecia evolar-se a partir de um círculo que aumentava centrado em sua circunferência que também se avolumava numa progressão assustadora. Senti-me impotente e tive vontade de chorar, mas consegui me controlar. Ela era apenas uma menina. Fiquei espantado.

- Venha – ela me disse com uma voz bastante suave – Tenho algo que meu pai quer que você beba.

- Simon quer que eu beba o quê? – minha sede fazia com que minhas palavras tropeçassem umas nas outras.

- Venha comigo.

Ela me tomou pelas mãos e seguimos até à margem do rio. Fiquei tentado a beber da água do rio, mas um asco superior à minha consciência – assim eu acreditei naquele instante – repeliu meu anseio e permaneci em pé, tremendo como se um frio nórdico houvesse invadido a região.

- Beba esse chá.

Ela me passou um copo talhado em madeira e que continha um chá denso. Sua cor de argila escura aumentou meu pânico. Mas eu sabia – e isso nós percebemos em nossas situações limites – que não havia escolha: ou eu bebia aquele chá de uma só vez ou já estaria desde já condenado a viver uma vida sedentária para todo o sempre. Minha resolução deveria ser determinada naquele exato instante. Peguei o copo e sorvi todo o seu conteúdo de um só gole.

Minha sede acalmou-se logo em seguida. Nana, não sei como, desapareceu e fiquei sozinho à margem do rio. Um sentimento incontestável de retorno foi erguido num altar mais próximo onde eu já me reconhecia como um ser humano. Minhas misérias pareciam distantes, veladas por signos sublimes de um mundo muito mais íntimo. Minha alegria, contudo, não durou muito. Das margens do rio vi emergirem dois grandes reis astecas: isso era impossível, pensei! Eles traziam uma imensa arca que continha folhas e cascas de alguma planta sagrada. No interior da arca percebi nitidamente um escaravelho gigante que andava de um lado para outro numa paciência filosófica. Isso é uma alucinação produzida pelo chá, pensei enquanto tentava me acalmar. Minha respiração, antes sôfrega e perdida, centralizava-se paulatinamente num ritmo mais nítido e particular. Os reis astecas falaram algo que não compreendi: apenas pude perceber que, devido a algum conhecimento que sempre esteve em mim, as cascas e as folhas eram a substância prima – a prima matéria – do chá que eu havia sorvido com tanto desespero. Minha sede, antes imperiosa e arredia, desaparecera com a mesma medida em que havia surgido. Sentei-me sobre um aglomerado de pedras que margeavam o rio e, inebriado com minha própria distância da realidade, dei livre curso à minha nova habitação temporária. Meus membros pareciam puxados por uma força gravitacional invencível. Presa de uma comiseração diluviana, de um sentimento fundamental de vida, minha mente via-se obrigada a registrar todo o passado da terra como história, como facticidade superior de nossas existências. No clarão benfazejo de uma insuportável claridade, contemplei dois gênios da humanidade como crianças: o primeiro, envolto por símbolos ancestrais, armas potentíssimas e ainda portando uma enorme barba, chorava no seio de um berço todo esculpido em bronze; o segundo, careca, envolto por um terno cinza, parecia-me ainda mais infantil: ambos eram o mesmo e isso assustou-me. Dois gigantes, como se saídos de uma pintura de Rafael ou Miguelangelo, portavam machados afiados: suas tarefas eram bem delimitadas: destruir os círculos de símbolos e atrocidades que também me tomavam num ciclo vicioso de atitudes e esperas inúteis. Assim, crivado de tanto desespero, principiei a vomitar. Meu vômito, sempre espesso e doloroso, era expelido com angústia e, o que me era bastante estranho, um prazer único. Quando minha visão tornou-se menos turva, percebi que eu estava vomitando fardos de cigarros: como fardos de fenos amarrados e prontos a serem levados a uma estrebaria qualquer. Minha garganta, acreditei, deveria estar sangrando. Foi quando, como num sonho muito denso em que nós nos vemos tomados por uma verdadeira sensação de realidade, compreendi que tudo aquilo era só um enorme retorno. Eu estava no antigo pátio de minha casa quando eu era ainda uma criança. Divisei as casas, as varandas, as plantas que cercavam o único jardim daquela rua sem saída e senti-me desamparado e, não posso negar, um pouco idiota. Eu tinha, então, apenas dez anos de idade. Estava brincando alegremente com alguns brinquedos quando surge minha mãe. Olhei-a com uma extrema felicidade: ela, de fato, havia falecido de uma doença terrível há dois anos atrás. Corri até seus braços e, envoltos num grande abraço, percebi como eu era pequeno diante daquela mulher, e aqui eu quero dizer pequeno mesmo: ela tomava-me em seu colo como se eu fosse um brinquedo.

- O que você tem feito de sua vida, meu filho? – sua voz revelava um grande pesar – Será que todo o amor que eu sempre devotei a você não foi suficiente para que você encontrasse aquilo que lhe seria mais peculiar, mais útil? Será que são necessários tantos círculos, tantas fugas? É a partir daqui, desta sua idade, que você tem que escolher quem você realmente será. A escolha, como sempre, será irrevogável. Como você não a fez antes, eis que lhe é dada esta única e sublime chance. Escolha, então, o melhor.

Meus olhos encheram-se de lágrimas e comecei a chorar copiosamente. Ela, em sua eterna doçura, alisava meus cabelos, cantava uma bela canção para que eu não me sentisse tão triste. Como seria possível tanto amor, tanta doação em um único ser? Eu estava absorto com sua grandiosidade e a mesquinhez absurda de minha vida. Num lance contemplei toda minha vida: passado, presente e futuro. Tudo estava dentro de uma única esfera e minha escolha jazia impávida sobre a mesma num silêncio próprio das catedrais e dos oceanos. Meu choro inundava os rios, os mares; a terra era banhada com minhas lágrimas. Desfraldei todas as minhas ilusões e gritei em desespero. No fim de meu grito surgiu, novamente, o mesmo rio à minha frente. Entrei em suas águas e, assim como Heráclito, eu era purificado pela constância impetuosa da vida e da natureza. E não era o mesmo, e só silêncio e quietude domavam o ar já transpirado em si mesmo de tanta dor e mistério. Cuspi sangue e retornei à casa de Simon. Ainda deitado em sua rede, ele agora parecia mais sério, na verdade podia-se falar numa expressão atarracada, sublime em sua gravidade.

- E então – ele falou – já fez sua decisão?

- Você sabe disso também? – perguntei sem compreender ou poder associar o que era realidade ou ficção. Havia, realmente, uma fronteira ou essa mesma fronteira era a própria ilusão?

- O mundo todo é sempre um único e grande livro.

- Sim – eu respondi – já tomei minha decisão.

- Então?

Meu corpo estremeceu. Mas eu sabia, e isso era inegável, que minha escolha era a única possível. Um silêncio secular vibrou inopinadamente sobre nossas cabeças. Minha voz, antes fragmentada e escassa, soou como se um rei poderoso houvesse decretado a liberdade de toda uma nação.

- Então? – ele repetiu.

- Vou me tornar escritor.

Simon permaneceu em silêncio, mas, mesmo assim, pude perceber um pequeno e leve sorriso que se esboçava nos cantos de seus lábios. Agradeço a minha mãe por sua ajuda. E, quanto à minha decisão, foi o que fiz.



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Um comentário:

  1. Adorei este conto em tudo , tanto no conteudo, quanto na forma em que foi escrito quanto na mensagem em si.Lembrei da época em que eu costumava escrever em contos aspectos de minha vida diaria, de meus sonhos e de meus pensamentos.A realidade em si era como uma fonte inesgotavel de inspiracao para que eu escrevesse.Ate as formigas que eu achava caminhando em meu quarto eram o suficiente para que eu elaborasse um texto atraves de insights que houvera tido.Seu texto me fez lembrar de aspectos de mim mesma importantes,e por vezes esquecidos.

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