sábado, 10 de julho de 2010

O Edifício ou Filosofia para mortos

Recebi uma carta bastante estranha esta manhã: “Compareça hoje ao prédio central da Corregedoria do Estado às 22:00 horas. Não comparecimento implicará em grave processo. Atenciosamente, Diretor Geral”. Por que haveriam de me convocar para uma sessão na Corregedoria? Eu era um homem isento de culpas, pagava meus impostos em dia e era um bom funcionário. E mais: por que numa hora tão inconveniente? E por que à noite? Evidente que nenhuma destas perguntas obteria qualquer resposta se eu mesmo não fosse tratar de tal assunto tão obscuro pessoalmente.

Comi um macarrão suculento acompanhado de um bom vinho tinto, coloquei meu melhor terno e segui para o prédio central da Corregedoria. Apesar de viver há quase vinte anos nesta cidade, o edifício era-me completamente estranho. Sua estrutura era monumental, um arranha-céu nebuloso, cinza, denso. Grandes portas de madeira – todas escuras – conduziam a corredores tomados por vapores obscuros, pois uma parca luz se estendia deficiente enquanto adentrávamos o edifício.

A sala de espera, que antecedia aos quatro antigos elevadores na entrada dessa insólita construção, assinalava ainda mais o aspecto sombrio do lugar deserto. No meio da penumbra, pude divisar o velho Simon sentado numa fila de cadeiras que conduzia aos elevadores. Simon sobressaltou-se com minha presença e, levantando-se assustado, correu para quatro cadeiras contíguas à entrada. Segui-o atônito: sua atitude não lhe era peculiar. Enquanto eu me aproximava, vi que o velho Simon, agora sentado numa das quatro cadeiras, fora dragado para o subsolo com uma fúria espantosa. Fiquei estagnado até que um homem negro surge no primeiro elevador gritando, gesticulando e correndo em minha direção. Apavorado, corri para o último elevador que estava aberto. Apertei o botão do 16º andar e todos os outros subseqüentes.

Minha respiração estava ofegante: que motivos teria esse indivíduo para me perseguir e, o que achei ainda mais insolente ainda, gritar-me com tamanho desespero? Quando o elevador parou, saí para verificar o que estava ocorrendo. Imensos corredores, salas negras e um vazio mortal reinavam. O barulho da porta do elevador se fechando às minhas costas quase me mata de um ataque do coração. Então, para meu eterno desespero, um homem com a face dilacerada por algo terrível irrompe de uma das salas e corre até mim gritando.

- Sr. J., por favor, Sr. J.

Sua voz não me permitia antever nenhum tipo de animosidade saudável, mas sim uma ira incontinenti que grassava com propriedade através de seus lábios.

- Sua morte quer lhe visitar, seu imbecil!

Ele grita com fúria, com um ódio lancinante. Meu pânico é tão gigantesco que fico absorto, quase dando tempo de suas mãos podres me alcançarem. Saio correndo em direção às escadas. A escadaria enegrecida segue sempre para cima com a luz parca adensando o ambiente. Estou suado, ofegante e não consigo concatenar minhas idéias com a devida precisão. Sinto o trepidar vulcânico dos passos que me perseguem: é uma guerra própria e sinistra. Minha corrida pelas escadas é sempre acompanhada por gritos e o ranger da madeira do corrimão. Percebo que enquanto mudo de rota e me dirijo ao 21º andar, um dos elevadores é aberto e revejo o homem negro. Estou perdido, penso. Entro em uma das salas negras: um odor insuportável de éter e instrumentos cirúrgicos se eleva, além do gosto próprio de mercúrio. A porta é escancarada como um relâmpago. O negro grita:

- Sua morte é seu tempo! O medo é sua morada!

Como uma dobra impensada deste percurso do maligno, eis que esta última frase me transubstancia a um mundo paralelo e próximo. A elevação de uma catarse onírica!

Semidesperto ao adentrar o prédio, vejo a presença do velho Simon à minha frente. Sua mão aperta calorosamente a minha.

- Não, senhor Simon – digo com resolução – O medo não é minha morada. E, sim, estarei mais atento com minha morte. E, por favor, diga a esses imbecis da Corregedoria que não lhes devo nada.

E parti.


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Um comentário:

  1. Formidavel!Genial!Parece mesmo o relato de um sonho.E o final foi perfeito! :)

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