sábado, 31 de julho de 2010

A Lista Maldita

Que outros se jactem das páginas que escreveram;

a mim me orgulham as que tenho lido.

                                              Borges



Sempre acreditei no indivíduo e não no coletivo. Isso não quer dizer, contudo, que eu acredite no individualismo. Não é isso. Nenhuma sociedade chegou a evoluir, e por isso mesmo revolucionar seus antigos preceitos, graças a ações fomentadas no seio do coletivo. Não, foi o indivíduo, essa força deslumbrante da Natureza quem rompeu com os grilhões que o esmagava, doando-se ao coletivo que tinha a partir de então uma referência superior, um novo modus operandis capaz de guiá-lo e conduzi-lo, ou não, às suas aspirações superiores. O mundo é um lugar interessante e está cheio dessas almas capazes de solidificar suas vontades sobre todo um bloco concreto denominado coletivo. E isso somos obrigados a afirmar mesmo em frente ao mais irascível materialista ou revolucionário, seja lá o que esses dois termos possam significar. Se nossa teoria repercutir de forma negativa, somos obrigados a evocar as figuras de Marx, Mao, Fidel, Lenin, Guevara e Stalin que são a imagem invertida deste espelho sublime que é o indivíduo pleno de si mesmo. Tudo o que é pleno em si mesmo é luz e transformação.

Foi imbuído com esse espírito longevo que cheguei à casa de Delanno. Sua esposa, Maria de Lourdes, recebeu-me com seu irredutível bom humor, solícita por natureza e dona de um sorriso esparso.

- Seja bem-vindo, caríssimo Carlos. Delanno o espera na sala assim como os outros convivas.

Que vocabulário maravilhoso! Agradeci e segui para a sala. A casa de Delanno ficava encravada na beira-mar. Imensos e preguiçosos coqueiros engalanavam aquela paisagem tropical, quente, convidativa ao descanso e sono. A casa era suntuosa, extremamente branca e limpa. Assim que adentrei a imensa sala de madeira, todos me saudaram com entusiasmo.

- Caríssimo Carlos. Que prazer imenso! – falou o anfitrião.

De certa forma, eu me sentia envergonhado com tanta cerimônia. Cumprimentei a todos com o mesmo entusiasmo e alegria: Pablo Castilha, o professor de grego; Ana Andaluzia, a pianista; Fernando Pers, o contador; Allejandro Florêncio, o arquiteto; Joaquim Esteván, o geólogo; Ana Maria FuenteNueva; a pintora cubista; George Graquillos, o representante do Partido; Tatiana DeRyhs; judia e mitóloga e, por fim, eu mesmo inserido nesse contexto surreal.

- Saudações calorosas a todos! - Eu era bom com as palavras. Havia sido educado, polido e, o que era mais importante, havia economizado um tempo enorme.

Ficamos conversando amenamente durante todo o início daquela noite infernalmente quente. Castilha bebia o vinho tinto que era servido com tanta fúria que suas palavras pareciam começar a saltar de seus lábios. DeRyhs servia-me pequenas porções de queijo argentino como se estivesse colhendo o néctar dos deuses.

- É, absolutamente, a coisa mais deliciosa que já saboreei em toda a minha vida.

Achei que esse culto exacerbado ao paladar era um pouco descabido, mas não gosto de julgar aos outros e, por isso mesmo, permaneci em silêncio. Ela, por seu turno, atacava os petiscos como se esses fossem desaparecer a qualquer instante. Todos os outros convivas – para usarmos a expressão da senhora Delanno - pareciam, assim como eu, satisfeitos com a festa. Como é agradável encontrar pessoas sadias, civilizadas e inteligentes para compartilhar uma noite dionisíaca como aquela.

Foi por volta da meia-noite que o próprio senhor Delanno veio nos anunciar que o jantar estava sendo servido e pedia a todos para que se dirigissem à mesa. Seguimos com entusiasmo para a imensa mesa de mogno que dominava sua sala de jantar. Sentados, todos a postos, esperávamos o jantar conversando sobre temas – ao menos para mim – de uma estranheza ímpar. Discutíamos sobre riqueza, miséria, revolução, políticos, partidos e fidelidade, situações econômicas e financeiras de vários países, possíveis soluções, meandros do mercado, conjuntura internacional e não sei o quê mais. O jantar surgiu de súbito e nem mesmo aquela dádiva da cozinha mexicana foi capaz de corroer a falácia intempestiva dos convivas – novamente a senhora Delanno. Tudo ia muito bem quando o velho Allejandro teve uma idéia diabólica.

- Senhoras e senhores – falou de seu posto – Proponho uma discussão das mais interessantes

- O que é, Allejandro? Vamos, diga-nos – implorou a boa senhora FuenteNueva.

- Bem, Ana, sei que todos aqui são pessoas letradas e que não há conhecimento na terra que não possamos discutir ou emitir uma opinião adequada. Proponho, então, que cada um diga em boa voz quais são os dez livros mais importantes de suas vidas.

Todos aplaudiram tal iniciativa de maneira entusiástica. Eu, de minha parte, sabia que estava perdido. Que idéia mais absurda. Isso era mexer com a pior ferida do ser humano: sua vaidade!

- Como anfitrião – disse o gracioso Delanno – sugiro que você mesmo, ó bom Allejandro, inicie essa maravilhosa lista.

Maravilhosa? Não era possível que ninguém ali percebesse o equívoco que poderia residir nessa brincadeira. Mas, mesmo assim, surda aos meus apelos silenciosos, a brincadeira começou. Um por um, cada conviva – aqui não vou mais citar a bondosa senhora Delanno – elaborou sua bendita lista. Marx, Hegel, Gramsci, Trotsky, Engels, Adorno, Marcuse, Foucault, Althusser, entre tantos outros, foram citados e celebrados como os arautos da única e bendita verdade. Eu estava perdido, repito. O ciclo foi se fechando por mais que eu me esquivasse. Quando todos já haviam emitido suas opiniões e comentários, pediram-me que elaborasse minha lista. O calor, o vinho, o excesso de comida talvez afetasse o julgamento de meus doces amigos. Pedi para não participar daquela brincadeira, pois naquela hora eu deveria estar sofrendo de um lapso de memória.

- Não, de forma alguma. Você vai participar, sim – arrematou Castilha.

- Isso mesmo. Vamos, homem, diga sua lista – sentenciou Andaluzia.

Vi-me encurralado qual um animal estúpido. Sei que sou humano e, portanto foi inevitável que minha vaidade falasse mais alta e dominasse todos os meus pensamentos. O som dos violinos que emergiam do aparelho de som conseguia colocar-me ainda mais em estado de alerta. Eu deveria enfrentar aquilo de uma forma ou de outra.

- Está bem – falei calmamente – Aí vai.

Todos aplaudiram minha decisão e ficaram em silêncio. A lista que eu falei foi a seguinte:



O Nuctemeron de Apolônio de Thyana;

Mysterium Magnum de Jacob Boheme;

O Sêfer Yetsirá;

Kabbalah Denudata de Rosenroth;

A Doutrina Secreta de Blavatsky;

Ulisses de Joyce;

A Divina Comédia de Dante;

Inferno de Strindberg;

A Odisséia de Kazantzákys e

O Processo de Kafka.



Mas dez era um número impossível aqui. Nada de Agrippa, Sartre, o Ser e Tempo de Heidegger, Valla, Plotino, Borges, Kant, Nietzsche e suas maravilhas, a própria Bíblia, meu Deus, eu havia esquecido a Bíblia, o Alcorão, os Vedantas, o Caibalion, Milton, Stevens, Frazer, Strauss, Jung, Malinowski, Chaucer e Goethe. Ainda residia um universo lá fora. Senti-me um traidor. Dez, nesse caso, era uma heresia. Porém, como era esperado, minha lista causou furor. Não havia nenhum brasileiro, nem mesmo Castro, Cunha, Freire ou Nassar. Que tristeza!

- Isso é a lista mais burguesa que eu já vi em toda minha vida – praguejou minha adorada anfitriã.

- Concordo plenamente – aduziu o velho e bom Esteván.

- Isso deve ser uma piada de mau gosto, não, meu caro? – questionou-me Graquillos.

- Não, estou falando sério. Mas ainda há tantos escritores que eu deveria render minha sincera homenagem.

O resultado foi pior do que eu esperava. Todos pareciam enfurecidos com minhas palavras.

- Seu burguês estúpido – praguejou novamente Esteván.

- Isso é uma insânia – assomou o transtornado Pers.

Repito, todos pareciam lunáticos insaciados, loucos por sangue.

- Calma, pessoal – tentei abrandar os ânimos que estavam mais do que exaltados – Só falei o nome de dez obras e nada mais. Só isso.

- Só isso?! Seu burguesinho, seu almofadinha – berrou meu anfitrião – Você deve estar louco ao dizer “só isso”!

Que fúria e que mau hálito!

- Pelo amor de Deus – eu implorei – Tenham calma.

Um alvoroço infernal já estava instalado. Foi quando levei uma tapa na cara. Surgiu do nada, aquela mão. Um pouco de sangue começou a escorrer de meu lábio inferior.

- Calma, pessoal – tentei argumentar – Assim vocês estão se excedendo.

Que sentimento de estranheza quando aquela faca perfurou meu abdômen. Não sei como aquilo ocorreu, mas era certo que a fúria assomava-se ao vinho, ao calor e ao excesso de comida. Somos seres muito frágeis ainda. Tombei no chão e em vez de receber socorro só escutei impropérios e mãos que estalavam com fúria no meu rosto ensanguentado. Será que havia alguma explicação para o que estava ocorrendo? Talvez uma, duas, três horas, não posso dizer com certeza, mas o certo era que aquele martírio, emoldurado por gritos, ganidos, gemidos e estertores de ódio levou todos a um estado mental tão alterado que ninguém mais se reconhecia. Foi quando gritaram.

- Ele está morrendo! Ele está morrendo!

Pensei que eu estava salvo e que a razão iria voltar às suas mentes. Mas, novamente, eu estava enganado. Ergueram-me, um mar de mãos, e conduziram-me para a praia. Os gritos e as tapas não cessavam. O corte aberto em meu abdômen expelia mais sangue do que eu poderia suportar. Seguiram esse ritual macabro até me lançarem na areia. O mar, sombrio e gélido, umedecia meus cabelos. Meus lábios estavam encharcados de sangue e areia.

- Por favor, ajudem-me – implorei.

Os gritos de burguês, estúpido, facínora e assassino cortavam o ar com fúria. Deixaram-me sozinho, envolvido com meus pensamentos e minha morte. Provavelmente iriam voltar ao delicioso jantar mexicano. Era um fato, eu não poderia culpar ao calor, ao vinho ou à comida por meu infortúnio. A Lua, em silêncio, parecia zombar de mim.



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domingo, 25 de julho de 2010

O bebedor de chá

Um homem dividido é um homem fraco. Esta frase não é minha e, na verdade, só cheguei até ela após uma experiência bastante singular. Muitas vezes nós somos assaltados pela nítida impressão de que todo o mundo é falso e de que nós mesmos não passamos de impostores. Evidente que tal sentimento não é muito agradável. Foi exatamente para tentar livrar-me desse incômodo involuntário que decidi visitar meu amigo Simon em sua pequena casa à margem do São Francisco.

Nossa amizade estava calcada em conhecimentos tão abstrusos e surreais, que muitas vezes eu me perguntava de onde ele retirava tantos conhecimentos sutis sobre a realidade e que para a maioria das pessoas era algo totalmente desconhecido ou simplesmente impossível de ser cogitado. Crédulo é aquele que acredita em tudo o que lhe é dito: assim, pensava eu, a humanidade quase toda era muito crédula ao acreditar que esse mundo só poderia ser dessa forma como ele era imediatamente apresentado ou apreendido pela experiência adquirida na infância. Quando colocamos um par de óculos escuros e percebemos e apreendemos a realidade sobre um prisma completamente novo – nesse caso apenas nossa consciência enquanto realizadora da função de protetora do mundo estático em si ergue-se para que o movimento possa ser composto e subentendido – divisamos um novo foco sobre algo de há muito conhecido.

Mas, e aqui surge um impasse, o que indica essa percepção única como fator decisivo de minha escolha por um modelo de realidade? Nossa tendência natural à segurança nos torna conservadores. A própria Natureza é conservadora: porém aqui a indicação é daquilo que conserva a si mesmo enquanto existente. Nós conservamos nossa realidade através de um esforço descomunal de repetições, consolidações e impessoalidade. Tal processo é deveras salutar e é exigido pelo próprio mundo. Se não fosse assim, simplesmente não haveria mundo. O que me intrigava, contudo, era imaginar a simples possibilidade de conhecer outro mundo superposto a esse meu velho mundo conhecido. Eu precisava de um par de óculos escuros para transfigurar a realidade e conhecer suas diferentes nuances. Meu anseio de saltar essa credulidade me colocava imediatamente num impasse.

Foi assim, impulsionado por uma busca bastante diversa, que parti ao encontro de meu amigo Simon em sua pequena casa à margem do São Francisco. Minha decisão era muito pessoal e por isso mesmo eu fui obrigado a partir sozinho. Numa noite de um céu aberto e revestido de infinitas estrelas, parti do Recife num ônibus que balançava sua carcaça deformada por uma estrada sem luz alguma e que sempre seguia em linha reta. Na estrada, meus pensamentos sempre se tornavam ágeis, fluindo com retidão de um campo mental a outro. Minhas costas doíam um pouco devido ao desconforto acentuado dos bancos.

Cerca de oitocentos quilômetros me separavam da casa de meu amigo e a viagem seria longa. Acendi um cigarro e enquanto a fumaça era expelida eu divisava o céu dominado por luzes eqüidistantes e a iluminação sempre confusa do interior do ônibus. Essa tortura voluntária durou até o outro dia de manhã. Numa estação rodoviária perdida no meio do nada, vi-me envolvido por um frio que cortava meu sistema nervoso com ferocidade, obrigando-me a vestir um casaco italiano de lã. Assim que coloquei o casaco, lembrei-me de Marutza, aquela doce criatura européia que havia me presenteado com uma vestimenta tão insólita para mim, mas que agora adquiria sua conformidade mais própria com a realidade. A imensidão do sertão e sua gritante falta de vegetação despontavam ante meus olhos.

A estação era simplória. Segui até um pequeno restaurante situado em seu interior. Mesas de madeira, uma televisão ligada e alguns homens em chapéus de feltro sorviam café e comiam em silêncio. Acheguei-me ao balcão, esfreguei as mãos com decisão e encarei um senhor de barriga volumosa e olhar doentio.

- Eu gostaria de um café com leite, pão com manteiga e um pouco de queijo, por gentileza.

- Só um momento – ele disse enquanto olhava fundo em meus olhos como se quisesse descobrir algum segredo. Fiquei um pouco constrangido com sua insistência em encarar-me, mas logo percebi que aquela atitude compunha o modo de ser de todos os habitantes daquele lugar. Após breves minutos eu já estava devidamente sentado e sorvendo meu café com leite. O pão era velho e o queijo parecia saído de alguma privada. Preferi comê-los sem pensar em seu conteúdo mais aparente. Paguei, acendi um novo cigarro e segui até uma estrada asfaltada.

Sob um sol devastador – o frio havia se dissipado e apenas um calor que trucidava qualquer esperança de vida dominava a região - decidi retirar meu casaco, colocando-o em minha pequena bolsa de viagem. Senti o vento em meu rosto e isto aumentou minha sensação de estar vivo, compartilhando cada momento de vida com o mundo. Na estrada asfaltada – na verdade a única que cortava todo o sertão – estacionei meu corpo numa estação improvisada onde tomei uma caminhonete bastante velha que me conduziria ao meu destino final. Alguns velhos comiam farinha ao meu lado enquanto senhoras de longos vestidos pareciam absortas com suas próprias vidas. De início senti-me um estranho entre aquelas pessoas, mas quanto mais adentrávamos o coração daquele deserto mais um sentimento de propriedade e estabilidade dominava-me. A imanência latente da vida que circundava o deserto aproximava-me de sua personalidade conquanto eu estivesse apto a circunscrevê-lo ante minha consciência como um ser vivo. Quando avistei o rio ao longe e suas pequenas montanhas tomadas por nuvens ligeiras, dei um salto, agarrei minha mala e gritei ao motorista:

- Desce aqui! – minha voz parecia adormecida por séculos.

O veículo parou, revelando a sofreguidão de sua ferragem e a impotência de seu motor. Agradeci ao motorista e segui por uma estrada de barro que levava à casa de meu amigo. Quando eu já me aproximava de seu lar, dei-me conta de que minha mala havia desaparecido.

- Será que a deixei na caminhonete? – perguntei-me sabendo que não haveria resposta.

A vegetação começou a adensar-se paulatinamente, compondo um quadro mais denso, eclipsado em seu deserto por arbustos cinzas e árvores com pele de espinhos. Senti um leve tremor em meu corpo: será que havia algo a ser temido naquele lugar? Tal inquietação afigurava-se estranha, uma vez que eu já conhecia aquele caminho. O que chamava minha atenção é que eu jamais havia notado a presença daqueles arbustos e árvores tão espectrais cercando o caminho que levava à casa de Simon.

De súbito, uma sede intempestiva elevou-se, atingiu uma culminância tão despótica que eu pensei que aquilo só poderia ser próprio de algum pesadelo. O clima de extrema aridez acentuava minha sede. Pensei em corais, arrecifes e um mar de ondas corrompidas pelo azul do próprio céu. De um horizonte que dragava em seu refúgio mais secreto todo o universo, algo produzia essa sede ingente que trafegava sorrateira por todo o meu corpo. Só um copo de água era o que eu parecia implorar. Não sei até que ponto a insolação ou a falta de água pode causar uma ilusão ante a mente. O que me espantava era o fato gritante de tal sede emergir do nada e alojar-se com tamanha potência em algum local que eu mesmo não conseguia visitar. Tentei me controlar: respirei profundamente, acendi um cigarro e segui minha caminhada que parecia jamais terminar. Aquela sede heteróclita usurpava meus pensamentos, condenando-me ao seu poder decisivo, o que acentuava a decadência quase espontânea de minha vontade. O cigarro causava-me náuseas e o caminho parecia uma estrada sem fim. Comecei a correr desesperadamente em direção à casa de Simon cujo telhado sempre vermelho de terra eu pude divisar com segurança. Quando cheguei à porta de sua casa percebi que alguém estava deitado numa rede posta displicentemente no terraço. Subi alguns degraus que conduziam ao alpendre. Vi o próprio Simon deitado na rede calmamente. Sua expressão parecia muito tranqüila e isso, de fato, contrastava com minha angústia.

- Preciso de água – implorei.

Ele parecia já saber de meu desespero.

- Você vai encontrar água na cozinha – ele indicou.

Saí correndo para a cozinha. Não sei até que ponto aquela sede intempestiva conseguiu dominar minha realidade, mas cheguei a imaginar que algumas meninas estavam fazendo sexo de forma desesperada em dois quartos mal iluminados da sala. Na cozinha, abri a geladeira e tomei duas garrafas de água de uma só vez. Minha surpresa foi muito maior quando minha sede, em vez de saciada, revolveu-se com violência, aumentando seu diâmetro. Uma menina de longos cabelos vermelhos surgiu na cozinha.

- Beba essa vasilha. Tem bastante água aqui - sua voz pareceu-me transtornada.

Verti todo o conteúdo da enorme jarra, mas minha sede parecia intransigente e decidida a habitar em meu corpo para sempre. Retornei ao terraço onde o velho Simon continuava balançando-se em sua rede com a maior tranqüilidade deste mundo.

- Simon – implorei – ajude-me. Estou consumido por uma sede terrível. Acho que vou morrer. Ajude-me. Ajude-me, por favor, faça algo para me salvar – minha voz implorava. Minha dignidade fora lançada ao espaço. Eu deveria parecer o homem mais patético do mundo, já que meu amigo não desfazia seu ar de tranqüilidade nem seu sorriso sempre largo.

- Nana está lá no quintal. Ela tem algo para você – sua voz soou como uma ordem. No meu desespero que se agigantava mais e mais, eu não tive dúvidas e sai correndo para o quintal de sua casa.

Alguns pés de pequi, com suas folhas esverdeadas, tomavam o quintal e escondiam o rio que serenava em seu curso milenar. Uma horta caseira coleava-se numa ordem singular: milho, feijão, café e plantas medicinais. Minha sede já havia me tomado de pânico; domava meus pensamentos e jogava-me de lá para cá como se eu fosse apenas um instrumento de sua existência voraz. Haveria algo capaz de me saciar? Consegui vislumbrar a silhueta esguia de Nana à sombra do pé de pequi.

- Nana – gemi – ajude-me. Estou morrendo de uma sede monstruosa! Ajude-me! Por favor, ajude-me! – eu me humilhava e não sabia disso.

Ela olhou em meus olhos e esboçou um sorriso de compreensão e compaixão. Meu estado deplorável não parecia lhe indicar nada de especial ou, ao menos, a necessidade de tomar uma atitude mais enérgica.

- Fique calmo – ela me disse, tentando serenar meu desespero – Será que você não sabe que não devemos colocar nosso destino nas mãos dos outros?

Sua voz suave e o poder de suas palavras estagnaram o tempo ante minha mente. Minha visão turvou-se e sua silhueta, antes tão bem definida e segura, parecia evolar-se a partir de um círculo que aumentava centrado em sua circunferência que também se avolumava numa progressão assustadora. Senti-me impotente e tive vontade de chorar, mas consegui me controlar. Ela era apenas uma menina. Fiquei espantado.

- Venha – ela me disse com uma voz bastante suave – Tenho algo que meu pai quer que você beba.

- Simon quer que eu beba o quê? – minha sede fazia com que minhas palavras tropeçassem umas nas outras.

- Venha comigo.

Ela me tomou pelas mãos e seguimos até à margem do rio. Fiquei tentado a beber da água do rio, mas um asco superior à minha consciência – assim eu acreditei naquele instante – repeliu meu anseio e permaneci em pé, tremendo como se um frio nórdico houvesse invadido a região.

- Beba esse chá.

Ela me passou um copo talhado em madeira e que continha um chá denso. Sua cor de argila escura aumentou meu pânico. Mas eu sabia – e isso nós percebemos em nossas situações limites – que não havia escolha: ou eu bebia aquele chá de uma só vez ou já estaria desde já condenado a viver uma vida sedentária para todo o sempre. Minha resolução deveria ser determinada naquele exato instante. Peguei o copo e sorvi todo o seu conteúdo de um só gole.

Minha sede acalmou-se logo em seguida. Nana, não sei como, desapareceu e fiquei sozinho à margem do rio. Um sentimento incontestável de retorno foi erguido num altar mais próximo onde eu já me reconhecia como um ser humano. Minhas misérias pareciam distantes, veladas por signos sublimes de um mundo muito mais íntimo. Minha alegria, contudo, não durou muito. Das margens do rio vi emergirem dois grandes reis astecas: isso era impossível, pensei! Eles traziam uma imensa arca que continha folhas e cascas de alguma planta sagrada. No interior da arca percebi nitidamente um escaravelho gigante que andava de um lado para outro numa paciência filosófica. Isso é uma alucinação produzida pelo chá, pensei enquanto tentava me acalmar. Minha respiração, antes sôfrega e perdida, centralizava-se paulatinamente num ritmo mais nítido e particular. Os reis astecas falaram algo que não compreendi: apenas pude perceber que, devido a algum conhecimento que sempre esteve em mim, as cascas e as folhas eram a substância prima – a prima matéria – do chá que eu havia sorvido com tanto desespero. Minha sede, antes imperiosa e arredia, desaparecera com a mesma medida em que havia surgido. Sentei-me sobre um aglomerado de pedras que margeavam o rio e, inebriado com minha própria distância da realidade, dei livre curso à minha nova habitação temporária. Meus membros pareciam puxados por uma força gravitacional invencível. Presa de uma comiseração diluviana, de um sentimento fundamental de vida, minha mente via-se obrigada a registrar todo o passado da terra como história, como facticidade superior de nossas existências. No clarão benfazejo de uma insuportável claridade, contemplei dois gênios da humanidade como crianças: o primeiro, envolto por símbolos ancestrais, armas potentíssimas e ainda portando uma enorme barba, chorava no seio de um berço todo esculpido em bronze; o segundo, careca, envolto por um terno cinza, parecia-me ainda mais infantil: ambos eram o mesmo e isso assustou-me. Dois gigantes, como se saídos de uma pintura de Rafael ou Miguelangelo, portavam machados afiados: suas tarefas eram bem delimitadas: destruir os círculos de símbolos e atrocidades que também me tomavam num ciclo vicioso de atitudes e esperas inúteis. Assim, crivado de tanto desespero, principiei a vomitar. Meu vômito, sempre espesso e doloroso, era expelido com angústia e, o que me era bastante estranho, um prazer único. Quando minha visão tornou-se menos turva, percebi que eu estava vomitando fardos de cigarros: como fardos de fenos amarrados e prontos a serem levados a uma estrebaria qualquer. Minha garganta, acreditei, deveria estar sangrando. Foi quando, como num sonho muito denso em que nós nos vemos tomados por uma verdadeira sensação de realidade, compreendi que tudo aquilo era só um enorme retorno. Eu estava no antigo pátio de minha casa quando eu era ainda uma criança. Divisei as casas, as varandas, as plantas que cercavam o único jardim daquela rua sem saída e senti-me desamparado e, não posso negar, um pouco idiota. Eu tinha, então, apenas dez anos de idade. Estava brincando alegremente com alguns brinquedos quando surge minha mãe. Olhei-a com uma extrema felicidade: ela, de fato, havia falecido de uma doença terrível há dois anos atrás. Corri até seus braços e, envoltos num grande abraço, percebi como eu era pequeno diante daquela mulher, e aqui eu quero dizer pequeno mesmo: ela tomava-me em seu colo como se eu fosse um brinquedo.

- O que você tem feito de sua vida, meu filho? – sua voz revelava um grande pesar – Será que todo o amor que eu sempre devotei a você não foi suficiente para que você encontrasse aquilo que lhe seria mais peculiar, mais útil? Será que são necessários tantos círculos, tantas fugas? É a partir daqui, desta sua idade, que você tem que escolher quem você realmente será. A escolha, como sempre, será irrevogável. Como você não a fez antes, eis que lhe é dada esta única e sublime chance. Escolha, então, o melhor.

Meus olhos encheram-se de lágrimas e comecei a chorar copiosamente. Ela, em sua eterna doçura, alisava meus cabelos, cantava uma bela canção para que eu não me sentisse tão triste. Como seria possível tanto amor, tanta doação em um único ser? Eu estava absorto com sua grandiosidade e a mesquinhez absurda de minha vida. Num lance contemplei toda minha vida: passado, presente e futuro. Tudo estava dentro de uma única esfera e minha escolha jazia impávida sobre a mesma num silêncio próprio das catedrais e dos oceanos. Meu choro inundava os rios, os mares; a terra era banhada com minhas lágrimas. Desfraldei todas as minhas ilusões e gritei em desespero. No fim de meu grito surgiu, novamente, o mesmo rio à minha frente. Entrei em suas águas e, assim como Heráclito, eu era purificado pela constância impetuosa da vida e da natureza. E não era o mesmo, e só silêncio e quietude domavam o ar já transpirado em si mesmo de tanta dor e mistério. Cuspi sangue e retornei à casa de Simon. Ainda deitado em sua rede, ele agora parecia mais sério, na verdade podia-se falar numa expressão atarracada, sublime em sua gravidade.

- E então – ele falou – já fez sua decisão?

- Você sabe disso também? – perguntei sem compreender ou poder associar o que era realidade ou ficção. Havia, realmente, uma fronteira ou essa mesma fronteira era a própria ilusão?

- O mundo todo é sempre um único e grande livro.

- Sim – eu respondi – já tomei minha decisão.

- Então?

Meu corpo estremeceu. Mas eu sabia, e isso era inegável, que minha escolha era a única possível. Um silêncio secular vibrou inopinadamente sobre nossas cabeças. Minha voz, antes fragmentada e escassa, soou como se um rei poderoso houvesse decretado a liberdade de toda uma nação.

- Então? – ele repetiu.

- Vou me tornar escritor.

Simon permaneceu em silêncio, mas, mesmo assim, pude perceber um pequeno e leve sorriso que se esboçava nos cantos de seus lábios. Agradeço a minha mãe por sua ajuda. E, quanto à minha decisão, foi o que fiz.



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sexta-feira, 16 de julho de 2010

A feira

    I




Do contato inextinguível, ou quase, de minhas andanças pelo Alto Sertão de Pernambuco, da Bahia e do Ceará, retirei o sumo próprio deste conto. Do contato com curandeiros e com a Amanita Muscaria, um alucinógeno que estruturou uma forma mais concisa ao meu entendimento, vislumbrei a materialidade existente na feira como ao movimento que buscava compreender.

Tudo isto colocou minha alma numa situação diletante, quase como uma estagnação frente às teorias digeridas no seio da solidão que se fortificava, e como a mesma coisa. Eu abandonara o criticismo pouco próprio de Kant; o neo-racionalismo de Carnap; a antropologia estatal de Lowie e Lévi-Strauss; a poesia hermética e transversa de Mallarmé e Kazantzákis; os silogismos inválidos de Cioran; o etnocentrismo exacerbado de Joyce e as cores interioranas de Guimarães Rosa. Mas eu bem sei que todo escritor, e há mesmo quem os tenha sob o vórtice do apreço, já que penso nisto em momentos de amargura, está sujeito às críticas rancorosas e enfadonhas, bem como à eterna paixão de todas as pessoas que os têm em mira. Eles passam pelo crivo da imolação, são dígamos, esmorecem e morrem. O nível exato seria, para mim, ressalvando o caso da paixão que é o mais intenso e sincero, manter o fio principal da escuta atenta.

Mas as viagens são como um bálsamo, um vaticínio único, a carga insuperável, ou quase, de explosões catatônicas em nós mesmos. É a medida que nos transporta a vislumbrar, de fora-nuto, os conceitos e categorias da essência do movimento inerente. Se algo não nos afeta, em certos casos, é lógico, torna-se mais fácil manter o fio da escuta atenta.

O Sertão foi a antítese das categorias subjacentes e difusas de meu entendimento, onde o centro é sempre estreme e fecundo de dilúvios os mais sombrios: a cáustica digestão do sol em suas faces. E o movimento é o centro e poucos o perceberam como tal, pois o desvelar é um ato contínuo e incessante de todas as coisas.

Todavia a feira transporta-me a níveis intrigantes e instigantes, apesar de não ser a antítese do sertão, porém se desloca nos contornos da materialidade do desvelar como uma irmã, uma espécie que outorga fins de serenidade peculiar à sua essência plurifásica. em mim o movimento.

Este conto foi escrito em cinco dias. Creio que houve uma catarse interior, bem provável será notificar o retorno à uma serenidade própria que a literatura concede-me. Por ora trata-se mais de uma verificação do que um mero exercício literário. E isto devo à feira, ao torpor ecumênico de sua existência, entendida basicamente como uma inércia moral, às explosões sutis das análises lingüísticas que a mesma fomenta. No dizer de Eggonópoulos, e citado – tão poucos – ( os raros ).

Este conto é a fusão.




II


Houve um tempo em que minha alma regozijava-se facilmente. Agora, imbricada com espelho sinistro que busco verter com ódio para compreendê-la, ela tornou-se distante e pouca, como esta, seca. Outrora era a poesia, com suas mentiras bem disfarçadas, que retinha com acuidade o meu rancor. E, muito antes, em estados de alardes estúpidos e apogeus insidiosos, houve filosófica dedicação ao mundo, bem como uma vertente extirpadora... essa cria de rancores envelhecidos.

Aqui, eu. Caedo senta-se ao meu lado no ônibus. Jezebel deve estar distante, algo que possa – com certeza - . O mercado aproxima-se. Sua silhueta de estanho – inegável. Atropelo roupas nas mulheres com cestas repletas de verduras o verde penetrante do coentro isto do ônibus. Em pleno centro nervoso da burocracia do Estado onde empresas em prédios quase gigantescos elevam suas preces à economia, ao poder público e privado, às legislações tributárias, às imbecilidades impetradas pela União, na avenida principal onde eu e Caedo descemos apressados do ônibus, velhos decrépitos, velhos enrugados, velhos espalham nas calçadas – com uma manta de plástico negro – a feira.

Umbelíferas, Compostas, Solanáceas, Liliáceas, as cores, a anarquia popular frente a si mesmos, diante da compostura decadente de suas misérias. Os gritos, o sol ergue-se virulento, trespassam a multidão – e chegam.

- É melhor cruzarmos agora – Caedo.

Eu sigo.

- Vamos – respondo.

Zunir. muito perto. uma madeixa, penso eu. de repolhos. uma trança de alho dependura-se fielmente na entrada da mulher – sua casa. Aqui não vemos e medimos as coisas, elas pensam e locomovem-se por si mesmas, para si, em si, resolutas evoluem com tranqüilidade ou algazarra. A feira.

A feira é um ser vivo. Nada morto. cada transpiração é indicada por uma cor, um gesto, um grito, e eu a percebo, percebo a evolução drástica da transpiração – basta vê-la – para poucos.

- É naquela rua ali, não? – Caedo. Os andaimes de ferro soerguido do antigo mercado destruído.

- Sim. aquela mesmo – digo. perto da rua.

Dois cantadores, a tradição dos chapéus denota-os. Eles seguem. poucos metros de nós. as violas dependuradas com segurança nos pescoços – trajes. Cuentro, diz. Uma barraca erguida sustentada na matemática do ferro e da madeira, onde cebolas misturam-se com imensos rolos de fumo, o olfato denuncia, distância, é fácil, vergastando o paladar, obliterando meus olhos, perante há de uma saca de urucu – a cor, agora – e pacotes de sena em plásticos transparentes – perante a existência.

Adentrar a feira, no torpor ecumênico de sua existência, é uma tarefa hermenêutica; o trepidar dos passos é ecumênico; a feira é como nenhuma religião e em si mesma é a própria; ecumênicas são as composições truculentas de suas faces, o passo em pressa o diz solenemente, diz também das divisões não expressas, dos arranjos, da beleza elísia do lugar. Adentrar a feira é como em lugar nenhum.

- Olhe a estrutura do mercado! – Caedo.

Sim. a estrutura é a própria forma.

- No retorno – falo.

O relance do vestido florido explica-me que tropecei no pé descalço de emaranhados trança de mulher. A rua é um delineador. é a marca não firmada de limites. casas seculares defloradas pelo lodo impróprio e pelo cinza narcótico dos arredores. janelas mais e mais fotografadas no elevar demudado do mofo entranhado em nossos pulmões e é como coisa alguma. sombras tornam-nas. barracas roçam os edifícios, é de suas essências o escorar. homens por detrás das ervas, cascas das plantas é o que é.

- Aqui – Caedo.

Dobrar e em frente. As primeiras barracas que se perfilam. A dobra foi o impacto verdadeiro. Da cidade meridiana aportamos no fluxo. Por delimitações. Muitas pessoas atravancam-se nas ruas estreitas, bodegas e mercados, nas barracas de ervas.

- Para cálculo – relembro.

- O que é necessário? – Caedo questiona.

- Eu sei o que é – olho em reta desfocada os níveis. as ervas eclodem seus poderes em todas as direções, e é bem mais importante. A feira. A feira delimita-se com a metrópole, apesar de ser ela mesma os recalques. É possível ver os sacos de panos com boldo, erva-doce, camomila, canela e todas as ervas festivas, dizia-o, apenas o gosto. Plaquetas de madeira aceleram as impressões: capim-santo é 200 o mói. É estreita a rua onde empurram. Além, a verdade.

Infinitas propriedades amontoam-se na ordem da mulher por cima da barraca decrépita que aflige a paciência do estranho que não entende as formalizações dos labirintos da feira em partes de ervas e plantas.

- Bom-dia – o sol. A mulher olha-me com indiferença, porém não tanta. Caedo escora-se perto das cascas de imburana-vermelha, acende um cigarro sem muita preocupação: analisa o fósforo e joga-o ao chão e observa.

- A senhora tem espinho-de-cigano? – Da raiz. particularmente – diferir. olho suas roupas, como numa contemplação.

- Claro que tenho, meu fi – remexe as propriedades. Baratas se estremecem e fogem por sobre as ervas. as frestas são seus recantos e lá estão protegidas. O verde próprio e os espinhos pequenos e esbranquiçados que se entramelam nas raízes é a coisa em si. a potência é emergente. Seguro a erva com cuidado para não me furar.

- Me dê um cigarro – estendo a mão livre e Caedo passa-me um cigarro. acendo-o e fito a curandeira: “preciso da casca do jenipapo-brabo”.

O movimento roupas da mulher escusa resmunga quase inaudível onde é que elas estão? Acentua seus olhares e ajeita os óculos na cara suada, pequenas memórias sinalizam – aqui está – ela retorna do amontoado e ergue em arcos com as nuvens a criação de pedaços de cascas amarelecidas.

- Isto é jenipapo. preciso do jenipapo-brabo – retruco. A impressão é imediata e seu semblante é a expressão nítida da compreensão, apesar do deslize que foi temporário ela se debate entre plantas na anatomia interiorana dos retrucados nós das raízes, onde evolar-se é crucial e traz à margem do meu campo de visão as cascas corretas e temos que seguir pois falo em quebra-faca e, um tanto agastado, os limites da espera que é o centro, esmolece e já podemos nos conter.

- Quebra-faca – o amargor me vem à boca. rápida mulher e seguros movimentos. movimentos de pedra. a mulher que cruza – é como Jezebel. perpetuar a mulher que não está ao meu lado. estão de sufixos. a velha é o limite para o êxtase, confunde-se propriamente perto, o mais perto possível da proximidade.

- Aqui - estende. destrinchando com olhos a poeira.

Coloco o pouco dinheiro desguarnecido e fita-me muito por pouco. sinais com as mãos para os lados. persiste fluentemente e a feira está disposta aos nossos desesperos inscientes.

Quenopodiáceas. Labiadas. cruzamos pimentas que denotam e estrangulam o ar com mãos de vermelho. piperáceas. cucubitáceas. manter intacta a região dos lábios – vamos tomar uma cana – Caedo sugerindo. – Certo – o sentido das barracas de cerveja e aguardente é o trajeto das carnes. Tripas e lombos que dão um significado único às ruas. o sangue desmancha-se em pequenos rios nas calçadas. gordo um homem em bigode recolhe pedaços inteiros de carneiros decepados as pernas ergue e coloca ao lado das carnes-de-sol. O sal próprio e acrescenta pimenta aos pés-de-porco, cancioneiro antigo, popular em excesso as tripas de bode e legumes cozidos. – Vamos nos sentar ali – Caedo percebe odores e sentamos onde uma cerveja é colocada. Pedimos charque com macaxeira e os homens se distinguem. podemos falar. quando uma velha, avental manchado de sangue, estraçalha o pescoço de uma galinha branca e respinga sangue em marcas e gritos e o gemido do animal comemos a charque e o aguardente retira a impressão de nojo para seguirmos.

Caedo. chegando na inóspita chuva modorra da tarde. O entardecer são parestesias, os aspectos de uma entrada e solavancos procura o dinheiro nos bolsos e são apenas três cervejas e um pouco de cana.

- O poema divide-se em cenas e atos – Caedo.

- Sim – eu nos limites e incito-o.

- É a última. cena um. pretérito. o encerramento. os olandeses caminham por uma rua silenciosa, yndo à villa de Igarassu. cena dois. É tarde, bem tarde em Olinda. cena três. grandfinale. em Holanda alguém olha uma tela. uma paisagem do Recife – Caedo.

Caminhamos nas modalidades da chuva pretérita. são os olandeses, ele diz. e é bem certo.

Então, ali, naquela tarde oniscilante, que deambulava o dia, como que um espasmo intempestivo, um sentimento de desespero fulminou minha alma; era como toda a indiferença que me perseguia e me colocava distante do mundo, ali, onde a feira demarcava as coisas e era assinalada por elas, eu estagnava-me ante a densidade gordurosa das coisas, a

densidade estúpida e grotescas dos

olhos, e era como isso. E espantei-

me e estava tremendo, uma vez que talvez seja a loucura o homem que nunca se reconcilia com o mundo e pensei na beleza de Jezebel como uma forma de manter-me na superfície, de manter o desespero distante e deixar-me intacto.



III


§ Fechei o livro de Gligoric e abri a carta vinda do México. Arruanjez escrevera-me antes, análises de Watts e Norbenkööld sobre a Amanita Muscaria e as estruturas totêmicas das tribos mexicanas. Arruanjez era um grande amigo e compartilhava de minhas especulações filológicas sobre a feira, bem como era um antropólogo cubano que desistira da ortodoxia metodológica das ciências exatas e humanas e decidira ir ao México estudar as várias formas de Psilocybe e a Amanita Muscaria: “o umbigo do mundo”, numa compreensão e visão do mundo (Weltauschauung) que ele próprio ditava estar aberta a qualquer um. Ele escreveu-me várias anotações, longos textos de estudos orgânicos e psíquicos produzidos em especial pela ingestão da Amanita. Uma carta de trinta e oito páginas, escrita com letra imprecisa, impressionou-me em particular. Arruanjez relatou o seu encontro com dois antropólogos e um xamã que conhecia os processos da Amanita. Os antropólogos, um francês e um indiano, também viajavam pelo mundo em busca de novos sentidos para a antropologia e decidiram ingerir o cogumelo assim como Arruanjez.


§ Acertados os pontos necessários para o ritual, todos ingeriram o líquido contido numa tigela de barro: o chá borbulhante.

§ O francês foi o primeiro a ingerir o líquido, seguido do indiano e do xamã que passou a tigela para Arruanjez que sorveu o líquido defectível com apreensão. Ele crê que o francês foi o primeiro a ser afetado, pois o mesmo começou a gritar e a girar, a face transtornada por algo horrível, depois se sentou e falava aos berros: “Je ne suis pas humain! Je ne suis pas humain!”. Enquanto isso, Arruanjez já começara a perder a noção mais íntima de sua vida e afundava em desespero o mais estranho para ele, descrevendo-me os parâmetros de sua alucinação com a realidade de uma maneira inteligível.

§ A carta terminava com um convite: Arruanjez estaria no Brasil em poucos dias e convidava-me para ingerir a droga. Os trabalhos e os dias estavam para começar, eu bem sabia.



IV

RÁGA : DA INGESTÃO



Natimorto desespero da ingestão da não inalação. Inulto percorre meus sentidos, ó forças que revelam, os navios por detrás da vermivermelha peça silente que estão pertos e devo deitar-me.

Asfixia das essências como categorias das formas das estruturas analisadas e operantes entre as outras estruturas e consigo mesmas enquanto modo operante de ser da substância onde o mundo mesmo ergue a ilusão de uma formalização das categorias, sendo o eixo em que se pensa o estado de coisas como maneira própria de relação, onde a figuração desprende-se da realidade para inserir o em-si como substância objetiva.

Onde estás tu, sentimento destro e incomensurável, que amplias a compreensão e eriges fielmente novas sombras? Sorvo novo gole e não percebo os limites de minha loucura nas casas de tetos negros por meus pensamentos da mulher presente e necessária, numa tragédia conforme, em que tem o centro em toda parte o sentido prisco, inúteis, todos, no divergir de ácio, como complemento, esqueçam essas tolices, apregoa enorme esguelho que não entende, mas na superação.

Conduzo-me como louco, como Gogol e Nassar, nas pequenas cercanias do Recife, perante mercadores de rostos incisos de frondas estranhas para as florestas esfumadas e o xamã está tão próximo que o toco com dedos de aura sinistra para manter o pacto e sentir o fio íntimo que há muito perdi. O burrico está morto de morte inalada e as estradas de Bodocó surgem e não sei ao certo como fui ter-me ali, a guerra prolixa de Bodocó com cangaceiros e o corte da faca está travado e não sairá mais de mim o sabia ao certo como homem e a certeza é tão impotente que giro e falo e Caedo corre como louco e perco sentidos de insolência ante divagações e será sempre como dor orgânica o que me mata todos os dias.



Trabalhos: densa, densa, densa, contornei a igreja e são arcos de geometria e de ângulos aglomerados, sólidos e quase perfeitos. vazias ao lado dos cartazes as janelas da realidade concretiva que absorve e Arruanjez incita pânico. latinos de olhos sobranceiros.



Dias :De soturno esbraveja quase longo para seus sorrisos acolhedores, meu telegrama esquálido desjejum, esvoejante, é verdade, vértebras peitorais na idiotice acumulada, história para meninas, reclama eufônico, não, exclama involuntário, desdém como provável solução, nos dizeres mais antigos dos trabalhos.



RÁGA : DA LUCIDEZ


Arruanjez e Caedo. Jezebel ficou na minha casa na parte velha do Recife. Espalmei minhas mãos em suas pernas e percebi o sol fortificando os calçamentos e os tetos das construções seculares. para o México, disse-me Caedo. Agora, quando sinto a densidade quieta e macia de Jezebel, pressinto a distância do desespero e da loucura. Peguei uma xícara de café e acendi um cigarro enquanto Jezebel recostava-se em linha correta perante o sol.

- Eles devem ter chegado agora – Jezebel revira os olhos ao falar e é como um bem-estar inigualável a presença.

- Sim, devem ter chegado.

- O que você vai fazer?

Demarcar forças e reuni-las, pensei.

Homens em trajes de manga descarregavam caixotes. A calmaria involuntária da rua deixou-me tranqüilo e pensei nos dias, na solução que sempre me escapava e tocá-la foi como o traço perfeito da minha vida. Jezebel estava linda, a solução pacificara meus lamentos, as sombras de pavor esvoaçavam sem sentido e o vigor do entendimento é a essência para minha compreensão. homens descarregavam caixotes, Jezebel contempla os desenhos da escala solar, as ruas afugentam os dilúvios. Não como forma de desespero ou tédio, porém a marca infindável de minha obstinação pela cura. Este conto é a fusão.



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sábado, 10 de julho de 2010

O Edifício ou Filosofia para mortos

Recebi uma carta bastante estranha esta manhã: “Compareça hoje ao prédio central da Corregedoria do Estado às 22:00 horas. Não comparecimento implicará em grave processo. Atenciosamente, Diretor Geral”. Por que haveriam de me convocar para uma sessão na Corregedoria? Eu era um homem isento de culpas, pagava meus impostos em dia e era um bom funcionário. E mais: por que numa hora tão inconveniente? E por que à noite? Evidente que nenhuma destas perguntas obteria qualquer resposta se eu mesmo não fosse tratar de tal assunto tão obscuro pessoalmente.

Comi um macarrão suculento acompanhado de um bom vinho tinto, coloquei meu melhor terno e segui para o prédio central da Corregedoria. Apesar de viver há quase vinte anos nesta cidade, o edifício era-me completamente estranho. Sua estrutura era monumental, um arranha-céu nebuloso, cinza, denso. Grandes portas de madeira – todas escuras – conduziam a corredores tomados por vapores obscuros, pois uma parca luz se estendia deficiente enquanto adentrávamos o edifício.

A sala de espera, que antecedia aos quatro antigos elevadores na entrada dessa insólita construção, assinalava ainda mais o aspecto sombrio do lugar deserto. No meio da penumbra, pude divisar o velho Simon sentado numa fila de cadeiras que conduzia aos elevadores. Simon sobressaltou-se com minha presença e, levantando-se assustado, correu para quatro cadeiras contíguas à entrada. Segui-o atônito: sua atitude não lhe era peculiar. Enquanto eu me aproximava, vi que o velho Simon, agora sentado numa das quatro cadeiras, fora dragado para o subsolo com uma fúria espantosa. Fiquei estagnado até que um homem negro surge no primeiro elevador gritando, gesticulando e correndo em minha direção. Apavorado, corri para o último elevador que estava aberto. Apertei o botão do 16º andar e todos os outros subseqüentes.

Minha respiração estava ofegante: que motivos teria esse indivíduo para me perseguir e, o que achei ainda mais insolente ainda, gritar-me com tamanho desespero? Quando o elevador parou, saí para verificar o que estava ocorrendo. Imensos corredores, salas negras e um vazio mortal reinavam. O barulho da porta do elevador se fechando às minhas costas quase me mata de um ataque do coração. Então, para meu eterno desespero, um homem com a face dilacerada por algo terrível irrompe de uma das salas e corre até mim gritando.

- Sr. J., por favor, Sr. J.

Sua voz não me permitia antever nenhum tipo de animosidade saudável, mas sim uma ira incontinenti que grassava com propriedade através de seus lábios.

- Sua morte quer lhe visitar, seu imbecil!

Ele grita com fúria, com um ódio lancinante. Meu pânico é tão gigantesco que fico absorto, quase dando tempo de suas mãos podres me alcançarem. Saio correndo em direção às escadas. A escadaria enegrecida segue sempre para cima com a luz parca adensando o ambiente. Estou suado, ofegante e não consigo concatenar minhas idéias com a devida precisão. Sinto o trepidar vulcânico dos passos que me perseguem: é uma guerra própria e sinistra. Minha corrida pelas escadas é sempre acompanhada por gritos e o ranger da madeira do corrimão. Percebo que enquanto mudo de rota e me dirijo ao 21º andar, um dos elevadores é aberto e revejo o homem negro. Estou perdido, penso. Entro em uma das salas negras: um odor insuportável de éter e instrumentos cirúrgicos se eleva, além do gosto próprio de mercúrio. A porta é escancarada como um relâmpago. O negro grita:

- Sua morte é seu tempo! O medo é sua morada!

Como uma dobra impensada deste percurso do maligno, eis que esta última frase me transubstancia a um mundo paralelo e próximo. A elevação de uma catarse onírica!

Semidesperto ao adentrar o prédio, vejo a presença do velho Simon à minha frente. Sua mão aperta calorosamente a minha.

- Não, senhor Simon – digo com resolução – O medo não é minha morada. E, sim, estarei mais atento com minha morte. E, por favor, diga a esses imbecis da Corregedoria que não lhes devo nada.

E parti.


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segunda-feira, 5 de julho de 2010

A filosofia do homem de terno azul



O homem de terno azul acordou com uma enorme dor de cabeça. A luz que adentrava pela janela de seu quarto aumentava seu martírio e, o que ainda era pior, o calor que se avolumava no interior do recinto asfixiava-o com mãos potentes. Ele tentou recordar-se se havia deixado a porta do quarto trancada à chave ou não e percebeu, não sem um certo assombro, que a porta estava trancada pelo lado de fora.

Pequenos quadros emolduravam as paredes, além de um enorme guarda-roupa de madeira que estava do outro lado da cama. O homem de terno azul tentou criar um quadro mental exato: sua intenção era esquadrinhar suas ações desde a noite passada e, assim, chegar até o ponto em que a porta de seu próprio quarto havia sido trancada.

Relembrou-se da tarde que caía oprimida pelo calor gigantesco do dia anterior, as luzes que se assomavam às próprias estrelas, os prédios, as pessoas, os lugares por onde havia passado, o pequeno restaurante chinês, a sua livraria favorita, o homem que vendia flores na entrada do cinema, o cheiro de comida no forno, a viagem no metrô, os sons, os movimentos e, por fim, o banho que tomou em casa após um dia estafante de trabalho.

Pensou em como se sentia oprimido pelo seu salário ridículo, pensou em sua ex-esposa, em seu filho que agora vivia no exterior e em seus pais que já haviam falecido. Sentiu-se só, mas, o que lhe pareceu até mesmo um pouco estranho, extremamente bem consigo mesmo. A tela mental criada por ele chegou até o ponto em que ele havia se deitado e, por um ato involuntário, adormecera. Nada surgiu em sua mente que indicasse como a porta havia sido fechada.

O homem de terno azul – e isso temos que dizer em seu favor – possuía uma memória extraordinária. Mas, e isso era um fato, não havia nenhum registro em sua mente sobre a chave ou, o que poderia ser ainda mais intrigante, nenhuma referência sobre quem, como ou o porquê da porta estar trancada. Muitas vezes – afirmamos que toda regra tem sua exceção – somos sobressaltados por instigações que parecem fluir de um oceano imperioso e abstrato que nos leva a filosofar sobre a vida de uma forma ou de outra. Cada um possui seu próprio sistema e, dentro deste sistema, gosta de elaborar as maiores fantasias a respeito de si próprio e do mundo. Com o homem de terno azul não poderia ser diferente. Assim pensou ele:

“Ou esse mundo é uma ilusão, uma transição ou a realidade definitiva. No primeiro caso, a chave não existe; a porta é só uma criação mental e esse quarto não está aqui. Eu estou dentro do meu próprio sonho, logo não estou trancado. Se isso é uma verdade, por que não consigo sair daqui? No segundo caso, estou dentro de um processo sempre em mutação e, portanto, ainda não domino completamente as chaves dessa realidade. Sei que devo e tenho que evoluir, e isso só acontece através do conhecimento; como ainda não tenho esse conhecimento, estou preso no meu próprio quarto. No terceiro caso, estou na realidade definitiva e, assim, não há nada transcendente. Tudo é como é. Mas, se tudo é tão material, por que ainda insisto em ter essas mesmas emoções fortuitas que insistem em assinalar que ainda não cheguei ao fim? Ou esse quarto não existe e, portanto, eu não estou nele ou há apenas uma emanação perene de uma energia mais sutil ou, por fim, as duas primeiras proposições estão equivocadas e tudo nunca deixou de ser de outra forma!”.

O homem de terno azul estava imerso em seus próprios pensamentos e, durante quase toda aquela manhã de domingo, continuou tentando raciocinar sobre como a realidade em que ele estava inserido era estruturada e, caso fosse possível, descobrir como aquele fenômeno poderia ser compreendido. Sua dor de cabeça aumentava em proporções geométricas e o calor envolvia o dia como uma serpente quase mítica.

O dia abraçava o calor com braços longos, esguios, e era quase impossível viver, andar ou pensar sobre tamanha potência, tamanha fornalha infernal. O homem de terno azul sentiu fome e desejo de tomar uma aspirina para curar a sua dor de cabeça fulminante. Seus pensamentos concentraram-se na cura e em comida. Um pequeno envelope com doze comprimidos, embalagem verde, um copo de água. Pão assado, suco de laranja e um pouco de queijo. Rompendo seus pensamentos bruscamente, seu irmão adentrou o quarto e perguntou se ele precisava de alguma coisa.

Sim, a filosofia do homem de terno azul estava quase correta: nosso mundo é, ao mesmo tempo, ilusão, transcendência e matéria. Tudo está em tudo, nada existe isolado, afirmou um grande filósofo há mais de dois mil e quinhentos anos atrás.


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