segunda-feira, 5 de julho de 2010

A filosofia do homem de terno azul



O homem de terno azul acordou com uma enorme dor de cabeça. A luz que adentrava pela janela de seu quarto aumentava seu martírio e, o que ainda era pior, o calor que se avolumava no interior do recinto asfixiava-o com mãos potentes. Ele tentou recordar-se se havia deixado a porta do quarto trancada à chave ou não e percebeu, não sem um certo assombro, que a porta estava trancada pelo lado de fora.

Pequenos quadros emolduravam as paredes, além de um enorme guarda-roupa de madeira que estava do outro lado da cama. O homem de terno azul tentou criar um quadro mental exato: sua intenção era esquadrinhar suas ações desde a noite passada e, assim, chegar até o ponto em que a porta de seu próprio quarto havia sido trancada.

Relembrou-se da tarde que caía oprimida pelo calor gigantesco do dia anterior, as luzes que se assomavam às próprias estrelas, os prédios, as pessoas, os lugares por onde havia passado, o pequeno restaurante chinês, a sua livraria favorita, o homem que vendia flores na entrada do cinema, o cheiro de comida no forno, a viagem no metrô, os sons, os movimentos e, por fim, o banho que tomou em casa após um dia estafante de trabalho.

Pensou em como se sentia oprimido pelo seu salário ridículo, pensou em sua ex-esposa, em seu filho que agora vivia no exterior e em seus pais que já haviam falecido. Sentiu-se só, mas, o que lhe pareceu até mesmo um pouco estranho, extremamente bem consigo mesmo. A tela mental criada por ele chegou até o ponto em que ele havia se deitado e, por um ato involuntário, adormecera. Nada surgiu em sua mente que indicasse como a porta havia sido fechada.

O homem de terno azul – e isso temos que dizer em seu favor – possuía uma memória extraordinária. Mas, e isso era um fato, não havia nenhum registro em sua mente sobre a chave ou, o que poderia ser ainda mais intrigante, nenhuma referência sobre quem, como ou o porquê da porta estar trancada. Muitas vezes – afirmamos que toda regra tem sua exceção – somos sobressaltados por instigações que parecem fluir de um oceano imperioso e abstrato que nos leva a filosofar sobre a vida de uma forma ou de outra. Cada um possui seu próprio sistema e, dentro deste sistema, gosta de elaborar as maiores fantasias a respeito de si próprio e do mundo. Com o homem de terno azul não poderia ser diferente. Assim pensou ele:

“Ou esse mundo é uma ilusão, uma transição ou a realidade definitiva. No primeiro caso, a chave não existe; a porta é só uma criação mental e esse quarto não está aqui. Eu estou dentro do meu próprio sonho, logo não estou trancado. Se isso é uma verdade, por que não consigo sair daqui? No segundo caso, estou dentro de um processo sempre em mutação e, portanto, ainda não domino completamente as chaves dessa realidade. Sei que devo e tenho que evoluir, e isso só acontece através do conhecimento; como ainda não tenho esse conhecimento, estou preso no meu próprio quarto. No terceiro caso, estou na realidade definitiva e, assim, não há nada transcendente. Tudo é como é. Mas, se tudo é tão material, por que ainda insisto em ter essas mesmas emoções fortuitas que insistem em assinalar que ainda não cheguei ao fim? Ou esse quarto não existe e, portanto, eu não estou nele ou há apenas uma emanação perene de uma energia mais sutil ou, por fim, as duas primeiras proposições estão equivocadas e tudo nunca deixou de ser de outra forma!”.

O homem de terno azul estava imerso em seus próprios pensamentos e, durante quase toda aquela manhã de domingo, continuou tentando raciocinar sobre como a realidade em que ele estava inserido era estruturada e, caso fosse possível, descobrir como aquele fenômeno poderia ser compreendido. Sua dor de cabeça aumentava em proporções geométricas e o calor envolvia o dia como uma serpente quase mítica.

O dia abraçava o calor com braços longos, esguios, e era quase impossível viver, andar ou pensar sobre tamanha potência, tamanha fornalha infernal. O homem de terno azul sentiu fome e desejo de tomar uma aspirina para curar a sua dor de cabeça fulminante. Seus pensamentos concentraram-se na cura e em comida. Um pequeno envelope com doze comprimidos, embalagem verde, um copo de água. Pão assado, suco de laranja e um pouco de queijo. Rompendo seus pensamentos bruscamente, seu irmão adentrou o quarto e perguntou se ele precisava de alguma coisa.

Sim, a filosofia do homem de terno azul estava quase correta: nosso mundo é, ao mesmo tempo, ilusão, transcendência e matéria. Tudo está em tudo, nada existe isolado, afirmou um grande filósofo há mais de dois mil e quinhentos anos atrás.


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