segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A Páscoa de Átis


Escuridão. Podia-se perceber a respiração ofegante de algumas pessoas, o suor escorrendo lentamente pela fronte ou o coração que parecia estourar dentro do peito e o choro ritmado de alguns devotos. Escuridão, uma escuridão completa. Uma padiola, no centro da sala, conservava a imagem do deus amado. Se a escuridão era completa, como se poderia saber, seja de que maneira fosse, que aquela era a imagem efetiva do grande deus? O odor imperturbável de óleo e plantas frescas dominava o ar ainda mais restrito, germinado em sua clausura imposta pelo volume gigantesco da escuridão. Artemiodoro, um rapaz de vinte e dois anos, cabelos longos, pele alva e as faces túrgidas como a mais pura neve, sentia um intenso desejo de chorar. Seria medo ou devoção o que compunha tal anseio? Há um limite bem posto entre o que é o medo e a devoção? Sua coragem era realmente coragem ou mera curiosidade pelo desconhecido?

O forte odor de sangue construía cadeias concêntricas de realizações por todo o ar até atingir seu objetivo: a mente de todos. Erigindo uma estranheza ainda mais inquietante, o sabor salitre das lágrimas reconduzia o devoto a um mundo onde o que pode ser reconhecido, amado ou odiado, já não tinha mais lugar. Artemiodoro pensou em sua amada Célere, pensou em seus cabelos negros, nos seus seios fartos e na beleza de sua barriga tomada pela mão do próprio deus em sua composição mais grata da primavera. Onde iriam habitar, que rios iriam ser visitados, que pessoas iriam compartilhar de suas ceias? Apenas na concentração, na criação vigorosa de sua mente era que ele conseguia permanecer calmo.

- Não temam, ó devotos do grande e amado Átis. Assim como o amor imorredouro da nossa deusa mãe, iremos reviver nosso amado deus. Pois do sangue que brota de nosso amor, eis que a terra torna-se mais fecunda e propícia para que ele, em sua esplendorosa veste de flores, renasça e nos dê de sua sublime seiva.

A voz do arquigalo soava com tanta firmeza, destemida e envolvente, que se poderia sentir o elevar-se do deus com seu rosto de pureza e gratidão. Artemiodoro foi violentamente tomado por um sentimento incomum de êxtase, uma certeza inabalável de que ele estava realmente fazendo a coisa certa. Como Célere deveria sentir-se orgulhosa de seu trabalho. Que prazer tão sorrateiro esse orgulho que nos invade sem aviso e que se aloja silenciosamente no mais profundo de nossas ações, reclamando suas moedas, regurgitando de prazer em fontes tão puras! Porém, e sabemos como nossos pensamentos são presas constantes do passado, o jovem Artemiodoro sentiu-se fatigado e lembrou-se de como havia chegado até ali.

Uma turba ensandecida de jovens tentava desesperadamente derrubar um enorme pinheiro que tomava quase toda uma clareira enorme no centro da floresta. Árvores seculares estagnavam o tempo, enquanto os urros empedernidos dos jovens cruzavam ferozmente o silêncio crepuscular da floresta. Timbales desafinados tentavam acompanhar flautas embevecidas numa tentativa canhestra de adorar o grande deus. Quando, por fim, a árvore foi arrancada de seu silêncio e vida, os jovens celebraram e arrastaram-na por toda a vila entremeando a robusta algaravia de seus desejos com a música desconexa e furiosa que alguns jovens mais embriagados tentavam compor.

- Vamos – alguém gritou – Adornem os ramos.

A imagem do deus foi colocada no pinheiro que foi prontamente apregoado no centro da vila. O templo do deus permanecia mudo ante a desordem e algazarra frenética de seus devotos: entre o silêncio e o barulho reside a mais perfeita fronteira já criada pela Natureza. Os sacerdotes dos Mistérios elevaram suas vozes de trovão e terror para todos. A cerimônia prosseguiu por dois dias. A loucura extática, o êxtase adquirido, a circularidade constante do pensamento e a fadiga do corpo compunham um quadro único: quem poderia prever qualquer ação, qualquer ato? Há razão onde os sentimentos são turvos e desconexos? Será a razão uma mera intérprete daquilo que sentimos? Artemiodoro estava tomado de amor pelo deus. Folhas de diversas árvores adornavam seu corpo e uma bela fita amarela cobria sua cabeça de um lado a outro. Sua felicidade era enorme.

- A dádiva e a alegria são nossas! - ele gritava em seu assomo incontido de êxtase.

Sobre um estrado de madeira, erguido à esquerda da entrada do templo, um oficial do deus, o arquigalo, atingia o clímax do ritual quando, de um só golpe, arrancava todo o seu órgão sexual, encharcando-se completamente de sangue e tomado por um frenesi incontinenti, superlativo e assombroso. O homem sempre busca superar a Natureza, mas cai ante a diversidade insuperável de suas belezas e mistérios. A dor, que em qualquer outro momento seria um martírio impossível e atroz, aqui era um presente, uma dádiva meditada e aguardada no período de um ano inteiro. Os jovens sentiam-se assombrados com o sangue. Outros, mais exaltados, empunhavam facas velozes e decepavam seus membros em honra ao deus. Artemiodoro, um grande devoto, decidiu emascular-se ante a divindade e, ele também, arrancou a fonte primordial de sua masculinidade. Extasiado, embriagado por sua devoção e felicidade, não sentiu nenhuma dor ou mesmo foi tomado de pânico: a indescritível alegria de ser um com o deus era enorme.

- A ti! – ele gritou.

A procissão não esmorecia: músicas, cantos, choros: homens, mulheres, crianças e sacerdotes compunham o quadro magnífico da humanidade.

Escuridão. Choros. Sangue. Lágrimas. Sal. Óleos. A escuridão ainda dominava o interior da sala sagrada do templo. Artemiodoro pensava em Célere e tentava, a todo custo, lembrar-se do odor volumoso do sangue. Assim, não mais que de repente, irrompe sala adentro um sacerdote ungido de óleos e folhas sagradas, gritando a plenos pulmões e trazendo em uma das mãos uma tocha que lançava luz por todo o recinto.

- O deus está salvo – ele gritava – O deus está salvo! Alegrai-vos.

Todos sentiam a tristeza dissipar-se de seus corações, a luz caudalosa que invadia aquela escuridão insuportável assomava-se ainda mais a tal sentimento. Mas será que estamos sempre dispostos a reconhecer os atos de nossos arrebatamentos sem culpas? Artemiodoro pensou em Célere. As portas do templo abriram-se e todos saíram numa correria libertadora. A luz trouxe a verdade que ele tanto tentava esquecer. Pensou em Célere e soube que agora não poderia mais sonhar com ela, com seus cabelos, seu corpo, sua voz e seus lábios. Como um homem poderia fazer uma mulher feliz sem dar-lhe da seiva mais preciosa? Como dar esperanças a uma mulher quando não se pode dar-lhe filhos? Artemiodoro colocou as mãos entre o rosto e chorou.



                          “Não é mortal, nem deus: é um herói

                                      Do mito de Cibele e Átis



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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O Antropólogo

A névoa se levanta; a névoa os faz tremer. Eu encho de névoa, a névoa se levanta; eu encho de névoa, a névoa que os faz tremer”.

Encantamento do giyorokaywa





A extraordinária influência que as obras de Franz Boas produziu no mundo acadêmico – círculos fechados de antropólogos ilustres – foi imensa e pode-se medi-la, como se possuíssemos um termômetro imaginário capaz de tal tarefa, pelo número de estudantes entusiastas que professaram a pesquisa de campo como ação basilar para suas pesquisas, abandonando os velhos documentos históricos e arqueológicos, passando a pesquisar in loco, num contato mais humano e realista com o conteúdo concreto de suas pesquisas. Se a leva de obras da envergadura de pesquisadores como Spencer, Gillen, Seligman e Radcliffe-Brown – apenas para citar alguns dos nomes mais expressivos – corroboravam em definitivo essa tendência inovadora, dando ao trabalho de campo sua devida importância ao mesmo tempo em que o transformava na base de sustentação das novas teorias antropológicas, podemos afirmar que é exatamente a partir desse gênio da Cracóvia que usava óculos engraçados e que possuía um espírito humano de dimensões gigantescas que se opera uma revolução dentro da mentalidade do antropólogo: a observação participante.

A observação direta exigia a convivência diária do pesquisador com o grupo a que ele havia decidido estudar. Não se tratava mais de usar intermediários para se atingir diretamente um desvelar progressivo de um conhecimento específico, mas sim um tornar-se parte, um processo que envolve – e isso se levarmos em consideração todas as mudanças que podem se processar no espírito do pesquisador – uma gradação ontológica sempre cada vez mais expansiva e adstringente. O espírito humano necessita de uma mente forte que possa guiá-lo, ou melhor, a mente do homem deve tornar-se apta a organizar e compreender as erupções tempestivas e devastadoras do espírito, sempre onipresente e onisciente. Quando o antropólogo submerge todo o seu ser num trabalho de pesquisa, ele deve estar sempre atento ao paradoxo latente que surge ante sua razão a todo tempo, ou seja, aspectos inconscientes que se mesclam com sua própria realidade fenomênica e as erupções de um inconsciente coletivo poderoso e obscuro a que ele se propõe estudar, muitas vezes mergulhando nesse mar sem a proteção providencial de um velho escafandro.

Esse grande gênio a que nos referimos e a quem a Antropologia deve muito, apesar das inúmeras críticas que sofreu e que mais serviram para obscurecer o sentido profundo de sua contribuição como ser humano (quem, sendo original, não é criticado?) do que contribuir para uma leitura legítima e profunda de suas obras mais importantes, foi o responsável por uma nova onda de entusiasmo que afetou de forma definitiva certos centros acadêmicos. Se pudermos concordar com Frazer e anuirmos que Malinowski demonstrou grande sagacidade ao descobrir o Kula, instituição econômica interligada por rituais mágicos e mitos, afirmando que o homem como animal necessita de uma fundamentação material, portanto econômica, devemos estar propensos a intuir claramente sobre sua interação com os nativos das ilhas Trobriand a leste da Nova Guiné e sua capacidade de observação acurada, sensível e, além de tudo, profunda e de grande alcance. Nosso gênio cracoviano e de óculos engraçados lançou as bases definitivas para que novos pesquisadores abandonassem seus lares e famílias e, imbuídos com um espírito de verdade e coragem, se deslocassem milhas e milhas através de oceanos tempestuosos, mares revoltos, rios virgens, desertos claudicantes e florestas misteriosas com o único intuito de realizar suas pesquisas etnográficas.

Foi assim que na metade da década de 30, mais especificamente no ano de 1935, que Marcus Theophilus Boyle, aluno promissor da Faculdade Superior de Antropologia da cidade de Paris, decidiu seguir os mesmos passos de seu mestre intelectual e planejou sua longa viagem às Ilhas do Pacífico. Boyle havia lido e relido as obras principais de Malinowski. Seu anseio por pesquisar em campo assomou-se aos níveis mais elevados e, num outono ameno, em meio aos livros de sua biblioteca particular, decidiu que partiria o mais rápido possível para o distrito de Kulamata, uma vez que o escopo fundamental de sua pesquisa deveria ter como base física a aldeia Walela, pois sua intenção era se aprofundar no estudo das bruxas voadoras. Os estudos de seu mestre já indicaram a importância que a feitiçaria e a magia assumiam na vida dos nativos e integrantes do Kula, envolvendo todos os campos da atividade humana. Apesar deste caráter universal da magia, Boyle desejava aprofundar-se na ação das bruxas voadoras e em todos os mecanismos que as tornavam possíveis, uma vez que sua intuição parecia-lhe indicar que neste ponto havia muito a ser descoberto. Após consultar seu professor e orientador, Dr. Konzmannoff, e compreender todos os processos burocráticos e técnicos necessários à sua empreitada, vagou anos em escritórios soturnos, gabinetes fastidiosos, conversou com várias pessoas de várias instituições, faculdades, departamentos e, por fim, após penosa peregrinação, conseguiu a documentação necessária e o apoio financeiro para dar vida ao seu sonho.

- O senhor acredita que em quantos meses irei terminar esta tarefa, professor?

Seu orientador olhava-o com certa surpresa, como se essa pergunta afrontasse diretamente sua inteligência.

- Sabemos pela experiência, caro Theophilus, que a etnografia é uma ciência de mil armadilhas. Associados ao espírito científico, nós temos o aventureiro e o andarilho. Nada nesse campo é previsível. Podemos apenas elaborar metas e tentar dar o melhor de nós para cumpri-las.

Isso era uma verdade. Boyle elevava seu olhar sobre a janela do gabinete do professor Konzmannoff e, divisando as ardósias tomadas pelo espírito do outono que dominavam o pátio oriental da faculdade, vislumbrava em sua mente essas ilhas tropicais consumidas pelo sal e pelo sol, e pensava com solenidade nesse povo tão distante e quase inalcançável. Seu espírito científico via-se envolvido por esse sentimento supranormal que revertia uma atmosfera de mito e magia em todas as coisas. Uma coisa, para sua mente e seu corpo, era certo: se enviássemos vinte diferentes pesquisadores para realizarem a mesma pesquisa no mesmo lugar – homens de retidão e caráter científico, todos cientes de um único objetivo – teríamos vinte diferentes teses sobre o mesmo problema.

Essa psicologia movediça, capaz de confundir os mais desavisados, criava uma névoa densa sobre o objeto de seus futuros estudos, mesmo que ele estivesse armado com as melhores armas e ferramentas. Ainda mais – acrescentava o próprio Theophilus – quando estamos estudando uma coisa tão apaixonante e intrigante quanto a magia. Seu objetivo não era estudar a organização do Kula, o que já havia sido feito magistralmente por seu mestre, nem elaborar uma nova compreensão para a existência da magia e da feitiçaria no próprio Kula. Seu interesse extrapolava e muito a área de ação da Antropologia enquanto ciência: ele desejava compreender se através da existência das bruxas voadoras como fato para os nativos, seria possível compreender algum mecanismo ainda mais sutil da mente, algo ainda não descoberto pelo pensamento ocidental.

Como homem de ciência, Theophilus era um apaixonado por matemática e biologia, falava vários idiomas, preocupava-se com os avanços tecnológicos de seu século e amava, sobretudo, os meandros intermináveis da Antropologia. Mas seu espírito arredio não acreditava na imanência desse mundo como fonte fenomênica pura da matéria. Para ele, a matéria representava um grau específico - bem específico, aliás – de um mar único de vibração. Ele sabia que cada homem interpreta a realidade a partir de si mesmo, e jamais da própria realidade. Isso indicava, para ele, que só há uma única realidade: a realidade mental. Ele não queria apenas estudar as bruxas voadoras, ele queria conhecê-las, sabê-las enquanto nativo, vê-las com os olhos de um nativo, interagir com suas existências no que elas tinham de belo e grotesco.

Theophilus entendia a observação participativa como uma verdadeira entrega religiosa, uma concentração mental capaz de dissipar seu eu pessoal no inconsciente de um determinado grupo humano. Sua teoria, bastante original, afirmava que cada grupo gerava no tempo e no espaço um campo de vibração mental que só poderia atingir aqueles que foram educados no seio dessa emanação, daí a existência de um inconsciente coletivo comum a toda humanidade com suas leis estabelecidas e uma gradação fenomenológica desse mesmo inconsciente enquanto grupo social. Teríamos uma base e a expressão cultural dessa mesma base. Assim como os antigos egípcios que acreditavam que seus mortos iam para uma região específica, Seket-Aaru, Theophilus acreditava que as emanações psíquicas de um determinado grupo humano geravam um correspondente palpável nas realizações, interações e trocas mentais dos participantes desse grupo, como se pairassem numa região que de tempos em tempos era acionada por algum dispositivo desse mesmo inconsciente para sua manutenção e existência.

Um homem primitivo, por exemplo, teria que ser mentalmente treinado para compreender uma apreciação estética mais elevada, ou seja, de um artista civilizado que trabalha sua obra com mecanismos e relações complexas. Ou mais ainda, compreender questões de bons modos que nos pareceriam a coisa mais simples do mundo. A identificação, portanto, seria o fator principal para o aparecimento desses “fantasmas” residuais do inconsciente. O treinamento mental do homem primitivo iria lhe capacitar entrar em sintonia com esse mar de criação mental deste novo grupo em que ele havia sido inserido. Isso não era uma crença, mas um fato constatável. Malinowski sabia que os processos mágicos e de feitiçaria não se resumiam a uma mera crença, uma vez que ele compreendia a relativa dificuldade em explicar certos fenômenos de cura que envolviam fé, oração e devoção. Boyle, partidário dessa dúvida, levava-a, entretanto, a paragens mais impalpáveis, levantando para si mesmo a hipótese de uma interação mental entre o corpo e a alma, entre a matéria e a mente. Talvez a Percepção Sensível de Hegel – conhecer a si mesmo através do outro que se mostra como o mesmo, mas dá-se como diferente pela multiplicidade – ajudasse-o a compreender e viver as bruxas voadoras como uma realidade. Seu trabalho como antropólogo visava descobrir vários segredos da mente humana que permaneciam ainda intocáveis.

Um ano mais tarde, após uma extensiva e exaustiva preparação, Boyle encetou definitivamente sua tão sonhada viagem. A bordo de um navio de bandeira norueguesa, ele navegou pelas águas sinistras e indomadas do Pacífico. Enquanto o navio cortava o oceano, ele pensava em sua vida e tudo o que estava sendo deixado para trás. Talvez, ele confabulava, entre esses nativos eu encontre a chave para compreender o mecanismo universal da mente humana. O vento marítimo excitava sua imaginação e acentuava sua capacidade natural de elaborar planos grandiosos. Se suas expectativas pudessem ser realizadas, ele retornaria à Paris pronto para ser aclamado, respeitado e amado por todos como um grande homem de ciência. Estávamos no ano de 1944 e Theophilus agradecia aos céus a oportunidade ímpar de livrar-se da Europa e de sua guerra ensandecida. Singrar aquele mar, aportar em portos distantes, ver rostos diferentes, ouvir línguas estranhas e a tudo aprender eram possibilidades que avultavam em seu espírito com força. Havia dois anos que seu mestre falecera. Seria uma honra enorme para ele dar continuidade às idéias principais de seu mentor intelectual.

Assim, num dia de sol enorme, Marcus Theophilus Boyle aportou no distrito de Kulamata. O branco intenso da areia, o balouçar constante dos coqueiros, o verde congestionado do mar, o vento que cortava seu rosto, a amplidão impensável daquele céu sempre azul, o gosto quase palpável de sal e espuma que aflorava em sua boca, a impressão lívida e intocável dos promontórios que se espraiavam pelas praias, os cumes das montanhas, os mundos de coral, tudo o transportava para um mundo distante de sua Europa devastada. Que prazer, ele pensava.

Com a experiência já há tempos adquirida, ele montou seu acampamento, freqüentou todos os seus apontamentos escritos com cuidado assombroso em seu escritório na faculdade, verificou as páginas de indicações lingüísticas do idioma nativo, folheou longamente as páginas escritas por seu mestre, traçou novamente seu plano de pesquisa e começou seu trabalho propriamente dito. Os nativos, como já havia sido fartamente indicado na literatura precedente, eram todos amistosos, tantos os homens, as mulheres e as crianças. Assim como havia sido assinalado por Malinowski, os nativos das Ilhas Trobriand não tinham realmente nenhum medo de fantasmas, de aparições espirituais. Nas suas realizações e consolidações sociais, o medo, o pavor e o terror mesmo estavam associados unicamente às bruxas, à magia negra e aos feiticeiros. O medo, de fato, corroborava ainda mais o poder que ambos detinham sobre todos os membros da sociedade.

As bruxas voadoras – chamadas na língua nativa de mulukwausi – representam um subgrupo social de extrema importância para a existência dos motivos concretos de consolidação do cotidiano dos nativos. São todas mulheres que treinam suas filhas desde o nascimento. As meninas tomam parte de cerimoniais mágicos desde que nascem. São consagradas, ensinadas a voar, a “ouvir” a morte de alguém, a comer carne humana, a transformar-se em pássaro noturno, morcego ou vaga-lume, a reconhecer e praticar todos os feitiços respectivos à sua função, a fazer projeção astral criando um “duplo”, entre outros pontos menores. O objetivo principal de Theophilus era conhecer com profundidade esse universo único das bruxas voadoras. Como canibais, elas assombravam a população e representavam um fator nefasto em todo o Kula. Mas esse canibalismo mágico, especialmente relativo à carne de cadáveres, encontra um eco intrigante na história. Um exemplo bem conhecido está em Apuleio. Esse narra que Telefron teve que tomar conta de um cadáver durante a noite para que as bruxas não tomassem o corpo de assalto e arrancassem pedaços de sua carne que, certamente, seriam usadas em seus feitiços. Ele, de fato, não poderia dormir ou mesmo piscar, pois assim poderia ser vítima do poder mágico das bruxas e ser dominado e, ele também, ter seus órgãos e sua carne arrancados por seres tão singulares.

Entre as bruxas voadoras de Wawela, por exemplo, era costume ensinar as crianças que seriam futuras bruxas a comer coral ou beber água do mar, o que aumentaria seu apetite por carne humana. Essas práticas e esses ensinamentos tinham por objetivo manter a unidade da prática e da funcionalidade social de seu grupo. Seria possível, questionava-se Theophilus, a um observador de outra cultura realmente presenciar esses seres ou estavam relegados a conhecê-los apenas através dos relatos assombrados dos nativos? Seu objetivo inabalável, portanto, consistia em ver as bruxas e não apenas ouvir relatos fantásticos. Elas existiriam como realidade efetiva, palpável, ou estariam gravitando apenas no inconsciente desse grupo social como fator de manutenção do mesmo?

Após vários meses de instalação e ambientação pessoal, Theophilus sentia-se já senhor de si, especialmente por poder por em prática a nova língua que havia sido estudada exaustivamente em Paris. Num belo dia de sol intenso, ele navegava numa grande canoa de um importante toliwaga quando este avisou que havia avistado algumas bruxas reunidas numa formação de coral logo adiante. As ondas espirravam o sal do mar por toda a canoa e o sol, em conjunto com o vento sul, adicionava um sabor de tempestade à sua viagem. Theophilus sentiu-se apreensivo, mas logo se dominou.

- Elas estão comendo um pouco de nada – afirmou o toliwaga.

Nada, assim o sabia Theophilus, era como os nativos chamavam um tipo especial de coral que era comido pelas bruxas para aumentar sua sede por carne humana. Eles estavam numa Kula wala, uma viagem marítima de pequeno porte. Mas, mesmo assim, os feitiços de proteção e evocação haviam sido exaustivamente preparados antes de sua partida. Os nativos acreditavam que os tubarões e todos os perigos do mar estavam diretamente associados às mulukwausi. Se algum tripulante cai ao mar, o perigo não é o naufrágio em si, mas o temor intransponível de serem devorados pelas bruxas através de todos os seus poderes. Portanto, mesmo tendo se preparado com o maior cuidado e atenção possíveis, os outros membros da canoa sentiram-se tomados de um terror espantoso quando o toliwaga havia informado sobre a proximidade das bruxas.

- Podemos vê-las? – perguntou Theophilos.

- Claro que sim. Elas estão mais próximas do que você imagina – disse um nativo de pele clara e olhos profundos.

- Onde? – inquiriu.

O toliwaga ergueu seu dedo indicador e apontou para uma pequena formação de corais a uns dois quilômetros de distância. Theophilus não conseguiu divisar com segurança o que ele realmente tinha visto. Percebeu duas sombras negras, ou algo assim, movimentando-se com extrema leveza sobre uma clara formação de corais vermelhos. Talvez a distância, o sol ou o movimento da canoa o impossibilitasse de ver com clareza o que realmente estava sobre os corais. Mas era um fato irrefutável que seus olhos haviam visto dois vultos sobre a formação de corais.

- São aquelas sombras? – ele perguntou novamente.

- Sim – respondeu o mesmo nativo.

- Podemos nos aproximar mais para vê-las?

A simples menção da possibilidade de uma aproximação com as bruxas deixou a todos na canoa exaltados, com olhos abertos pelo medo.

- Isso é impossível. Seríamos devorados – disse o toliwaga com espanto.

Theophilus percebeu que os nativos estavam conversando com um homem velho que os acompanhava com extremo respeito. Ele soube logo em seguida que se tratava de um velho e famoso feiticeiro que conhecia todos os feitiços usados pelas bruxas, pois sua mãe era uma bruxa também. Sentiam-se, dessa forma, menos atemorizados. O velho feiticeiro logo principiou um encantamento para que o vento os levasse para longe dali e para que as bruxas permanecessem distantes; esse último era conhecido entre os nativos como a magia da névoa, o kayga’u. De súbito, e Theophilus não soube precisar como, uma das sombras parecia ter se aproximado bastante da canoa, a uma distância de quinhentos metros. Um dos tripulantes deu um grito e apontou na mesma direção em que Theophilus havia registrado aquela estranha sombra. Tratava-se, de fato, de uma sombra compacta de uns dois metros de altura e um de largura. Um calafrio incomum percorreu sua espinha. Os nativos tentavam manter a calma, concentrando seus esforços na mudança rápida de direção da canoa. O velho feiticeiro continuava com seus encantamentos. Como pesquisador e cientista, Theophilus não poderia compartilhar desse medo. Mas quando um ameaçador tubarão começou a circundar a canoa, seu medo tornou-se cristalizado e dominou-o.

- Vejam – gritou um dos nativos – As bruxas.

Aquele terror durou por duas horas. Depois, em terra firme, todos contavam como o feiticeiro havia conseguido livrá-los da morte com seu poderoso kayga’u. Comentaram da loucura do homem branco que queria ver as bruxas de perto. Todos riram de sua ingenuidade e Theophilus também se riu. Que vida e que prazer em tudo, ele pensou.





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Após quatro anos de convivência com os nativos daquelas ilhas que trancavam a mente num mundo em que tudo era possível e realizável, Marcus Theophilus Boyle havia dado cabo a seu primeiro trabalho: As bruxas voadoras do sistema Kula. Seu trabalho não despertou o interesse desejado por ele. Ele reconhecia que sua obra fora ofuscada pelo lançamento de Magia, Ciência e Religião e outros ensaios do próprio Malinowski e isso, apesar de sua frustração inicial, não o deixou verdadeiramente triste, muito pelo contrário, seu espírito sentiu-se mais livre do que nunca com a coincidência – e ele não acreditava nelas – de seu trabalho ser lançado ao mesmo tempo em que aquela obra magnífica.

Depois de alguns anos não se ouviu mais falar em Theophilus; nem tampouco em suas teorias criativas que extrapolavam um pouco o âmbito estrito da ciência. Alguns navios de expedição ainda aportaram nas Ilhas Trobriand e inclusive seu professor Konzmannoff tentou encontrá-lo, mas não tiveram nenhuma pista do paradeiro daquele promissor antropólogo. Alguns nativos – e isso souberam através do professor Konzmannoff – afirmavam que Theuwana, como eles chamavam Theophilus, havia se tornado um dos mais importantes feiticeiros de um Kula distante e que era muito difícil encontrá-lo se ele mesmo não quisesse aparecer. Alguns expedicionários e missionários, inclusive, tentaram encontrá-lo no meio daquele universo particular de ilhas, mas todas as tentativas redundaram em um solene fracasso. Não sabemos e não podemos nem mesmo entender como Theophilus desapareceu dentro daquele povo de índole tão pacata e bondosa. O professor Konzmannoff ainda conseguiu coletar no antigo acampamento de Theophilus algumas folhas avulsas de um segundo trabalho que este estava começando a redigir. Eis um dos trechos mais interessantes:

“A lua iluminava o telhado das cabanas e a textura das palhas dos coqueiros. Eu me encontrava sentado à frente de minha tenda. Dois nativos me acompanhavam, conversando tranqüilamente sobre nossa última expedição e os preparativos para a grande festa do Kula. Eu os informei que havia visto uns tokway perambulando pelas árvores naquela mesma noite. Eles sorriram e disseram que eles estavam apenas de passagem. O tom da conversa, entretanto, mudou muito quando começamos a falar do triste naufrágio que havia ocorrido naquela manhã. Sabíamos que dois homens estavam desaparecidos e suas famílias pranteavam desde cedo. Todos receavam que as bruxas voadoras surgissem naquela mesma noite. Todos já estavam fechados em suas cabanas. Os dois nativos que me acompanhavam eram estudantes de feitiçaria e acreditavam que sua magia os protegeria de qualquer ataque das bruxas. Isso era um pouco incomum, uma vez que os nativos tentavam evitar as bruxas de qualquer maneira. Eles me pareciam excessivamente intrépidos e confiantes em si mesmos, muito mais do que o mais experiente feiticeiro da tribo. Entretanto, um súbito lampejo de vento frio tomou a tribo toda de assalto. Os dois jovens tremeram quando pressentiram o que realmente se aproximava. Eram mais bravateiros do que eu pude conceber. Eu tentei divisar o céu e a luz que a lua refletia, mas fui ofuscado por uma dezena de sombras que voavam com destreza de um lado para outro. Pude ouvir claramente o som metálico que elas faziam. Os cabelos de minha nuca ficaram eriçados e quase dou um pulo da pedra onde estava assentado. Os dois jovens principiaram uma carreira desordenada até suas cabanas e logo desaparecem de minha vista. Apesar do pânico incontrolável que aquela situação e minha solidão causavam em meu espírito, senti-me impulsionado a ver o que realmente estava me apavorando. Levantei-me de uma vez e segui em direção ao centro da aldeia onde as sombras pareciam maiores e mais volumosas. Quanto mais eu andava, mas as sombras se distanciavam. Contudo, e isso percebi devido a uma brusca luz que chegou até a clareira principal, toda vez que eu olhava para cima as sombras estagnavam seu bailado como se estivessem esperando algo. Percebi o que fazer: escalar as árvores mais altas. Agucei meus ouvidos, abri bem os olhos e procurei me manter calmo. Escalei uma árvore de copa frondosa e bastante alta. A escuridão repentina não me ajudava a ver com segurança o que eram aquelas sombras. Evoquei mentalmente o ritual que me havia sido ensinado no caso de confronto direto com as bruxas e sem explicação alguma me senti fortalecido para aquele combate imaginário. Parecia-me muito certo que se elas eram de fato as bruxas voadoras, estariam ali acreditando que os corpos dos homens desaparecidos no naufrágio deveriam estar na tribo.

Esgueirei-me como pude entre os galhos da árvore e, por fim, me aproximei do centro em que as sombras estavam se concentrando. Percebi vozes femininas e um odor translúcido de um hálito que misturava sal e peixe ou algo assim. Quando uma das sombras se aproximou e chegou muito próximo a mim, senti como uma fisgada em meu rim direito, dando um grito de dor e quase caindo do cimo da árvore. Respirei profundamente e cuspi tão forte que senti um fio de sangue escorrendo em meus lábios. Talvez movidas pelo odor do sangue – que naquele instante pareceu invadir toda a tribo – as sombras aproximaram-se e principiaram um ataque feroz contra mim. Foi então que vi a verdade: vi os rostos de todas aquelas mulheres, vi o sangue escorrendo em seus lábios e o torpor feroz de seus olhos brancos, quase distantes. Seus cabelos eram iguais aos das nativas que eu já conhecia e exceto por alguns adornos que eu ainda não havia visto desde então, elas eram mulheres comuns. Fiquei espantado comigo mesmo, pois eu estava vendo aquelas sombras como seres humanos. Elas revolteavam no ar com uma destreza assombrosa. Aproximaram-se de mim com as bocas escancaradas e tentaram arrancar pedaços de minha carne. Por algum mecanismo que naquele momento me pareceu completamente imaterial, eu conseguia afastá-la com certa facilidade.

Mas isso não obliterava ou fazia o terror que eu me encontrava dissipar-se com facilidade. Tudo realmente aconteceu em poucos minutos. Disse-lhes que o cadáver que elas estavam procurando não se encontrava na tribo, e que seria melhor elas irem procurá-lo nos arrecifes de corais ou em alguma outra praia. Toda vez que uma delas se aproximava com a boca escancarada – e eu estava mais atento do que nunca – eu cuspia em seu rosto e isso as deixava com mais fúria ainda, muito provavelmente por se sentirem impotentes em suas tentativas de me devorar. Minhas pernas e braços tremiam, mas eu sabia que estava lutando por minha vida.

De súbito, e isso sem explicação alguma, a lua tornou-se mais brilhante, refletindo com um poder sublime a luz do sol. As bruxas, pude perceber com o maior alívio que eu já havia experimentado em vida, partiram voando para a formação de coral mais próxima. Desci da árvore ainda trêmulo e com um gosto terrível de sangue na boca. Passei um mês inteiro entre a vida e a morte, deitado na minha tenda e sendo atendido por um dos mais poderosos feiticeiros do distrito inteiro. Ele, na verdade, havia se oferecido a vir de longe para curar o que ele mesmo chamava de “o poderoso feiticeiro branco”. Quando retornei ao mundo dos vivos, todos na tribo começaram a me tratar com um respeito inigualável. Eu passei, então, a receber presentes de todos e a ser visitado por feiticeiros de várias ilhas que sempre me ensinavam algo novo. Foi assim que num dia tomado pelo sol e pelo sal, eu decidi ...”

O professor Konzmannoff havia desistido de procurar seu aluno dileto. Talvez fosse mesmo melhor deixá-lo viver sua nova vida. A realidade, ele pensou, está toda em nossa mente.


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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Ars Diluvian

          O dilúvio havia terminado. Noé, a estibordo da imensa arca que ele havia construído com suas próprias mãos, divisou o horizonte e a terra encharcada. Nenhum sinal de vida, apenas terra e lama. Nem uma árvore, ele pensou. Movido por sua impetuosidade natural, Noé convocou a todos e, dando ordens com sua voz tonitruante, o processo de repovoamento da terra foi iniciado. Apesar das dimensões reduzidas da arca, centenas, milhares, milhões de animais foram surgindo do interior da embarcação e descendo até à terra firme. Era incrível: animais infinitos desciam pela pequena rampa de madeira que servia de acesso à nova morada e, ainda estarrecidos com a liberdade que haviam herdado, moviam-se vagarosamente de um lado ao outro, estonteados com a imensidão celestial daquela nova paisagem. Camelos, leões, crocodilos, zebras, tigres, elefantes, aves, répteis, seres esquálidos, seres inominados, da terra, do ar, da água e do fogo, todos celebravam a nova existência. Cam, pai de Canaã e filho de Noé, aproximou-se do homem de longos cabelos brancos, segurou-lhe o ombro enquanto contemplavam o movimento dos animais e segredou-lhe: “Deus não nos abandonou, pai”. Seu tom indicava alívio e, ao mesmo tempo, um espírito torturado pela dúvida, por uma incerteza gigantesca. “Nunca duvidei disso, meu filho. Nunca”, as palavras do ancião tinham a coloração de mil verões e a harmonia infinita da felicidade reservada aos fortes. “Nunca”, repetiu solenemente. Em pouco tempo haviam montado acampamento sobre as montanhas do Ararat e, aguardando as águas que iam diminuindo pouco a pouco, elevaram um altar ao Senhor, tomaram todos os animais puros e que foram oferecidos em holocausto sobre o altar. O Deus de Noé celebrou consigo uma aliança e, movido por tal certeza, o patriarca erguia a nova árvore da vida. Todos, sem exceção, trabalhavam para manter os proventos necessários: a terra era fértil e nada lhes faltava. Certa noite, quando as estrelas brilhavam com intensidade e o céu transpirava com força, Noé bebeu vinho, embriagou-se e apareceu nu no meio de sua tenda. Cam ficou assombrado com a nudez de seu pai e, sem compreender o que aquilo significava, correu até seus dois irmãos e contou o que havia visto. Sem e Jefet tomaram de uma imensa capa de pele de carneiro e cobriram a nudez de seu pai. No outro dia, quando um sol virulento já assinalava que a luz inexorável da vida sobrepunha-se ao dilúvio, Noé despertou de sua embriaguez e soube o que lhe tinha feito o seu filho mais novo. “Maldito seja Canaã”, disse ele e, embevecido em sua própria ira, acrescentou: “Que ele seja o ultimo dos escravos de seus irmãos!”. Da água para a terra a vida continuava e reclamava, como sempre, os seus tributos. Desde esse dia assim vive a humanidade: dominada pela polaridade e, aflita, não reconhece quem é seu senhor. Feliz o homem que reconhece a nudez de seu pai e a cobre. Maldito aquele que não consegue ler os signos do mundo.

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domingo, 8 de agosto de 2010

O discípulo do Marquês de Sade

A consciência é um círculo que sempre se expande.

                                                        LaRochette


O conde Yves Devaubann era um homem excêntrico, de estatura volumosa, ombros largos, enormes bigodes e uma cabeça bem redonda e segura sobre seu imenso pescoço. Herdeiro de uma fortuna considerável, ele passava a maioria do tempo de sua vida diletante entre os saraus da corte, os recitais de piano, os banhos turcos e o deleite paradisíaco que sua imensa propriedade nas imediações fronteiriças de Paris permitia ao mais simples dos mortais. Homem de formação duvidosa – seu pai antes de enriquecer com o comércio de tecidos era um mero vendedor de especiarias que vinham de todas as partes da Europa (tecidos, jóias, pimenta, quadros, frutas e corantes) e sua mãe vivia ocupada com as tarefas domésticas – o conde Yves Devaubann logo cedo demonstrou sua tendência natural ao sarcasmo, à pilhéria e à degradação alheia.

Seus amigos de infância, ao contrário, tiveram melhor sorte na vida e enriqueceram ainda jovens. O Capitão Sorelle e o vendedor de quadros famosos LaRochette eram exemplos vivos desta assertiva. Iniciaram a vida nos negócios logo cedo e, apesar de também pertencerem a classes sociais inferiores, trabalharam arduamente para conseguirem seus objetivos. Apesar de seus amigos alcançarem o sucesso dentro deste universo, eles jamais abandonaram a amizade de Devaubann, muito pelo contrário, o amigo menos afortunado era o mentor deles, uma espécie de gênio empobrecido, mas que sempre merecia atenção por ter algo profundo a dizer.

Devaubann não era um homem letrado, longe disso, mas sua inquietação e ambição naturais eram tão fortes em sua vida que ele passou naturalmente a questionar tudo o que o cercava e decidiu, então, que poderia compreender o mundo, os homens e a si mesmo sem jamais ter lido um único livro. Sua filosofia caótica continha certo charme e isso, de fato, impressionava seus amigos. Foi desta forma que Devaubann, através de Sorelle e LaRochette, adentrou a vida na corte, conheceu mulheres excepcionais e despudoradas, penetrou num universo particular, restrito a um seleto número de seres privilegiados. Mas o pobre Devaubann não tinha posses, não tinha berço e todos sabiam que ele era sustentado por seus amigos.

O destino, entretanto, havia reservado algo muito especial para Devaubann: um rico comerciante alemão, Habermmas Schiller, havia falecido e por nunca ter se preocupado com coisa alguma na vida a não ser com o dinheiro e sua fortuna, não havia deixado ninguém sobre a terra capaz de herdar seu imenso patrimônio. Um advogado extremamente correto – e isso é uma raridade, o que prova que o destino estava realmente trabalhando a favor de Devaubann – descobriu que o rico Schiller tinha laços obscuros de parentesco com a família Devaubann e que toda aquela fortuna deveria ser transferida para a França – acreditem ou não – e que, devido a termos ainda mais obscuros de um contrato inimaginável, Yves Devaubann, filho único de Marcel Yves Devaubann, seria o herdeiro universal de tamanha fortuna.

Yves logo se dirigiu para a região da Bavária com seus fiéis amigos onde passaram noites inteiras comemorando tamanha felicidade. Foi numa dessas noites de orgias, bebedeiras e esquecimento que Yves teve acesso a um pequeno livrinho. Talvez mãos mágicas houvessem colocado-o em seu colo, talvez uma força fantástica e desconhecida tenha operado tamanho milagre. Eis que um texto inteiro do Marquês de Sade havia sido deposto no colo de Yves Devaubann. O pobre diabo embriagado começou a folhear aquelas folhas com uma ânsia tresloucada, sorvendo cada linha como se fosse uma fonte imperecível de energia e luz. No outro dia ele já havia decidido: não havia Deus, ao homem só deveria interessar o prazer da carne e, para dar ensejo a tais pensamentos e saciar seus desejos mais fundos, iria comprar um imenso castelo nas regiões dos Cárpatos onde ele e seus amigos poderiam por em prática seus anseios mais insanos.

Os três amigos adquiriram a citada propriedade, contrataram criados fiéis e escolhidos a dedo, arregimentaram as mulheres mais pervertidas da região para ajudá-los em suas empreitadas diabólicas, compraram infindas quantidades de mantimento e se instalaram em definitivo no Castelo. Sorelle, devido aos seus conhecimentos militares, ficou encarregado de providenciar os seqüestros dos sete rapazes e das sete moças, todos virgens e de famílias abastadas e que serviriam de repasto aos apetites desenfreados dos três amigos. LaRochette, homem de formação culta, letrado, capaz de entrar e sair nos lugares mais refinados, respeitado pela alta sociedade, ficou encarregado de providenciar os músicos, os livros, as bebidas, as comidas e outras coisas que poderiam saciar seus desejos mais refinados. Foi no ano de 1830 que se deu início ao relato que se segue. O pai de Yves havia falecido e isso aumentava ainda mais a sua riqueza e seu poder.

Era uma tarde tenebrosa de outono quando os três amigos adentraram um dos cômodos principais do Castelo onde os quatorzes jovens estavam. Todos estavam nus, amarrados às costas e atrelados ao chão por correntes poderosas. Seus órgãos genitais estavam enfeitados com pinturas campestres e seus olhos sofreram uma maquilagem própria dos egípcios. LaRochette aproximou-se de uma pequena menina loira que estava chorando. Esbofeteou-a com violência e avisou que era proibido chorar naquele recinto e que qualquer digressão a tal ordem seria punida com a morte. Subitamente desceu sua língua voluptuosa até as genitálias da criança e começou uma sucção desenfreada.

Sorelle havia amarrado dois jovens e uma menina aos seus pés e chicoteava-os, intercalando tal violência com afagos e carinhos em suas partes mais íntimas. Devaubann estava penetrando um menino de apenas treze anos sobre um imenso divã que estava disposto ao lado da imensa janela principal de onde podíamos divisar a bela paisagem campestre que se estendia até o horizonte. Várias mulheres percorriam o recinto derramando champanhe sobre os amigos, afagando-os, dizendo obscenidades, masturbando-se com fúria e sofreguidão. LaRochette, tomado de êxtase, recitou de um só fôlego: “É na verdade mais que humano prazer, sobre as montanhas, ao relento da noite repousando, com a mente abranger em puro êxtase toda a terra e os céus, enfatuando-se até julgar-se Deus”. Os amigos aplaudiram-no e o concerto de gemidos, impropérios, imprecações e gritos continuou a noite toda.

Durante 120 dias aquela sinfonia da luxúria continuou com as harmonias mais grotescas; não sendo a fonte das fontes, o apetite dos três amigos secou e, atônitos, procuraram como renovar seus desejos. Consultaram livros, folhearam o livrinho e pareciam estagnados em suas próprias mentes. Devaubann meditou a manhã inteira: recusou-se se banquetear com seus amigos, dirigindo-se à torre mais alta do castelo para refletir. Encharcado de tudo, seu cérebro parecia uma imensa nuvem branca, flutuando de um lado para outro. Ele contemplou o céu e num lampejo de última loucura teve uma idéia que julgou brilhante. Desceu correndo as escadas e surgiu aos berros num dos cômodos ricamente decorado onde seus amigos saciavam-se com os jovens. “Tive uma iluminação. Sei como realizaremos o grand finale”. Seus amigos pararam suas atividades, entreolharam-se curiosos e questionaram: “Que idéia magnífica foi essa, caro amigo?”, perguntou Sorelle enquanto beijava os seios rígidos de uma jovenzinha de olhos verdes e lábios vermelhos. Devaubann precipitou-se ao cômodo contíguo e convocou seus amigos para uma reunião.

No último dia de Sodoma, os amigos deram ensejo ao grand finale mentalizado por Devaubann. No imenso pátio do Castelo eles erigiram quatorzes cruzes enormes, colocaram um imenso barril de vinho à frente das cruzes e postaram as mulheres, todas nuas e pintadas, ao redor dos objetos de tortura. Um a um, cada jovem foi crucificado, tendo seus órgãos genitais arrancados e fritados com azeite num enorme fogo. Os amigos banquetearam-se com os órgãos dos jovens, encharcaram-se de vinho e violentaram os cadáveres dos meninos e das meninas. As mulheres banhavam seus corpos cansados com mais vinho e, a intervalos regulares, lambiam seus membros eretos e jamais saciados. O céu estava negro, nuvens pesadas caminhavam de cá para lá adornando um crepúsculo vermelho como o sangue.



   For man will hearken to his glozing lies,


   And easily transgress the sole command.

                                                   Milton

sábado, 31 de julho de 2010

A Lista Maldita

Que outros se jactem das páginas que escreveram;

a mim me orgulham as que tenho lido.

                                              Borges



Sempre acreditei no indivíduo e não no coletivo. Isso não quer dizer, contudo, que eu acredite no individualismo. Não é isso. Nenhuma sociedade chegou a evoluir, e por isso mesmo revolucionar seus antigos preceitos, graças a ações fomentadas no seio do coletivo. Não, foi o indivíduo, essa força deslumbrante da Natureza quem rompeu com os grilhões que o esmagava, doando-se ao coletivo que tinha a partir de então uma referência superior, um novo modus operandis capaz de guiá-lo e conduzi-lo, ou não, às suas aspirações superiores. O mundo é um lugar interessante e está cheio dessas almas capazes de solidificar suas vontades sobre todo um bloco concreto denominado coletivo. E isso somos obrigados a afirmar mesmo em frente ao mais irascível materialista ou revolucionário, seja lá o que esses dois termos possam significar. Se nossa teoria repercutir de forma negativa, somos obrigados a evocar as figuras de Marx, Mao, Fidel, Lenin, Guevara e Stalin que são a imagem invertida deste espelho sublime que é o indivíduo pleno de si mesmo. Tudo o que é pleno em si mesmo é luz e transformação.

Foi imbuído com esse espírito longevo que cheguei à casa de Delanno. Sua esposa, Maria de Lourdes, recebeu-me com seu irredutível bom humor, solícita por natureza e dona de um sorriso esparso.

- Seja bem-vindo, caríssimo Carlos. Delanno o espera na sala assim como os outros convivas.

Que vocabulário maravilhoso! Agradeci e segui para a sala. A casa de Delanno ficava encravada na beira-mar. Imensos e preguiçosos coqueiros engalanavam aquela paisagem tropical, quente, convidativa ao descanso e sono. A casa era suntuosa, extremamente branca e limpa. Assim que adentrei a imensa sala de madeira, todos me saudaram com entusiasmo.

- Caríssimo Carlos. Que prazer imenso! – falou o anfitrião.

De certa forma, eu me sentia envergonhado com tanta cerimônia. Cumprimentei a todos com o mesmo entusiasmo e alegria: Pablo Castilha, o professor de grego; Ana Andaluzia, a pianista; Fernando Pers, o contador; Allejandro Florêncio, o arquiteto; Joaquim Esteván, o geólogo; Ana Maria FuenteNueva; a pintora cubista; George Graquillos, o representante do Partido; Tatiana DeRyhs; judia e mitóloga e, por fim, eu mesmo inserido nesse contexto surreal.

- Saudações calorosas a todos! - Eu era bom com as palavras. Havia sido educado, polido e, o que era mais importante, havia economizado um tempo enorme.

Ficamos conversando amenamente durante todo o início daquela noite infernalmente quente. Castilha bebia o vinho tinto que era servido com tanta fúria que suas palavras pareciam começar a saltar de seus lábios. DeRyhs servia-me pequenas porções de queijo argentino como se estivesse colhendo o néctar dos deuses.

- É, absolutamente, a coisa mais deliciosa que já saboreei em toda a minha vida.

Achei que esse culto exacerbado ao paladar era um pouco descabido, mas não gosto de julgar aos outros e, por isso mesmo, permaneci em silêncio. Ela, por seu turno, atacava os petiscos como se esses fossem desaparecer a qualquer instante. Todos os outros convivas – para usarmos a expressão da senhora Delanno - pareciam, assim como eu, satisfeitos com a festa. Como é agradável encontrar pessoas sadias, civilizadas e inteligentes para compartilhar uma noite dionisíaca como aquela.

Foi por volta da meia-noite que o próprio senhor Delanno veio nos anunciar que o jantar estava sendo servido e pedia a todos para que se dirigissem à mesa. Seguimos com entusiasmo para a imensa mesa de mogno que dominava sua sala de jantar. Sentados, todos a postos, esperávamos o jantar conversando sobre temas – ao menos para mim – de uma estranheza ímpar. Discutíamos sobre riqueza, miséria, revolução, políticos, partidos e fidelidade, situações econômicas e financeiras de vários países, possíveis soluções, meandros do mercado, conjuntura internacional e não sei o quê mais. O jantar surgiu de súbito e nem mesmo aquela dádiva da cozinha mexicana foi capaz de corroer a falácia intempestiva dos convivas – novamente a senhora Delanno. Tudo ia muito bem quando o velho Allejandro teve uma idéia diabólica.

- Senhoras e senhores – falou de seu posto – Proponho uma discussão das mais interessantes

- O que é, Allejandro? Vamos, diga-nos – implorou a boa senhora FuenteNueva.

- Bem, Ana, sei que todos aqui são pessoas letradas e que não há conhecimento na terra que não possamos discutir ou emitir uma opinião adequada. Proponho, então, que cada um diga em boa voz quais são os dez livros mais importantes de suas vidas.

Todos aplaudiram tal iniciativa de maneira entusiástica. Eu, de minha parte, sabia que estava perdido. Que idéia mais absurda. Isso era mexer com a pior ferida do ser humano: sua vaidade!

- Como anfitrião – disse o gracioso Delanno – sugiro que você mesmo, ó bom Allejandro, inicie essa maravilhosa lista.

Maravilhosa? Não era possível que ninguém ali percebesse o equívoco que poderia residir nessa brincadeira. Mas, mesmo assim, surda aos meus apelos silenciosos, a brincadeira começou. Um por um, cada conviva – aqui não vou mais citar a bondosa senhora Delanno – elaborou sua bendita lista. Marx, Hegel, Gramsci, Trotsky, Engels, Adorno, Marcuse, Foucault, Althusser, entre tantos outros, foram citados e celebrados como os arautos da única e bendita verdade. Eu estava perdido, repito. O ciclo foi se fechando por mais que eu me esquivasse. Quando todos já haviam emitido suas opiniões e comentários, pediram-me que elaborasse minha lista. O calor, o vinho, o excesso de comida talvez afetasse o julgamento de meus doces amigos. Pedi para não participar daquela brincadeira, pois naquela hora eu deveria estar sofrendo de um lapso de memória.

- Não, de forma alguma. Você vai participar, sim – arrematou Castilha.

- Isso mesmo. Vamos, homem, diga sua lista – sentenciou Andaluzia.

Vi-me encurralado qual um animal estúpido. Sei que sou humano e, portanto foi inevitável que minha vaidade falasse mais alta e dominasse todos os meus pensamentos. O som dos violinos que emergiam do aparelho de som conseguia colocar-me ainda mais em estado de alerta. Eu deveria enfrentar aquilo de uma forma ou de outra.

- Está bem – falei calmamente – Aí vai.

Todos aplaudiram minha decisão e ficaram em silêncio. A lista que eu falei foi a seguinte:



O Nuctemeron de Apolônio de Thyana;

Mysterium Magnum de Jacob Boheme;

O Sêfer Yetsirá;

Kabbalah Denudata de Rosenroth;

A Doutrina Secreta de Blavatsky;

Ulisses de Joyce;

A Divina Comédia de Dante;

Inferno de Strindberg;

A Odisséia de Kazantzákys e

O Processo de Kafka.



Mas dez era um número impossível aqui. Nada de Agrippa, Sartre, o Ser e Tempo de Heidegger, Valla, Plotino, Borges, Kant, Nietzsche e suas maravilhas, a própria Bíblia, meu Deus, eu havia esquecido a Bíblia, o Alcorão, os Vedantas, o Caibalion, Milton, Stevens, Frazer, Strauss, Jung, Malinowski, Chaucer e Goethe. Ainda residia um universo lá fora. Senti-me um traidor. Dez, nesse caso, era uma heresia. Porém, como era esperado, minha lista causou furor. Não havia nenhum brasileiro, nem mesmo Castro, Cunha, Freire ou Nassar. Que tristeza!

- Isso é a lista mais burguesa que eu já vi em toda minha vida – praguejou minha adorada anfitriã.

- Concordo plenamente – aduziu o velho e bom Esteván.

- Isso deve ser uma piada de mau gosto, não, meu caro? – questionou-me Graquillos.

- Não, estou falando sério. Mas ainda há tantos escritores que eu deveria render minha sincera homenagem.

O resultado foi pior do que eu esperava. Todos pareciam enfurecidos com minhas palavras.

- Seu burguês estúpido – praguejou novamente Esteván.

- Isso é uma insânia – assomou o transtornado Pers.

Repito, todos pareciam lunáticos insaciados, loucos por sangue.

- Calma, pessoal – tentei abrandar os ânimos que estavam mais do que exaltados – Só falei o nome de dez obras e nada mais. Só isso.

- Só isso?! Seu burguesinho, seu almofadinha – berrou meu anfitrião – Você deve estar louco ao dizer “só isso”!

Que fúria e que mau hálito!

- Pelo amor de Deus – eu implorei – Tenham calma.

Um alvoroço infernal já estava instalado. Foi quando levei uma tapa na cara. Surgiu do nada, aquela mão. Um pouco de sangue começou a escorrer de meu lábio inferior.

- Calma, pessoal – tentei argumentar – Assim vocês estão se excedendo.

Que sentimento de estranheza quando aquela faca perfurou meu abdômen. Não sei como aquilo ocorreu, mas era certo que a fúria assomava-se ao vinho, ao calor e ao excesso de comida. Somos seres muito frágeis ainda. Tombei no chão e em vez de receber socorro só escutei impropérios e mãos que estalavam com fúria no meu rosto ensanguentado. Será que havia alguma explicação para o que estava ocorrendo? Talvez uma, duas, três horas, não posso dizer com certeza, mas o certo era que aquele martírio, emoldurado por gritos, ganidos, gemidos e estertores de ódio levou todos a um estado mental tão alterado que ninguém mais se reconhecia. Foi quando gritaram.

- Ele está morrendo! Ele está morrendo!

Pensei que eu estava salvo e que a razão iria voltar às suas mentes. Mas, novamente, eu estava enganado. Ergueram-me, um mar de mãos, e conduziram-me para a praia. Os gritos e as tapas não cessavam. O corte aberto em meu abdômen expelia mais sangue do que eu poderia suportar. Seguiram esse ritual macabro até me lançarem na areia. O mar, sombrio e gélido, umedecia meus cabelos. Meus lábios estavam encharcados de sangue e areia.

- Por favor, ajudem-me – implorei.

Os gritos de burguês, estúpido, facínora e assassino cortavam o ar com fúria. Deixaram-me sozinho, envolvido com meus pensamentos e minha morte. Provavelmente iriam voltar ao delicioso jantar mexicano. Era um fato, eu não poderia culpar ao calor, ao vinho ou à comida por meu infortúnio. A Lua, em silêncio, parecia zombar de mim.



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domingo, 25 de julho de 2010

O bebedor de chá

Um homem dividido é um homem fraco. Esta frase não é minha e, na verdade, só cheguei até ela após uma experiência bastante singular. Muitas vezes nós somos assaltados pela nítida impressão de que todo o mundo é falso e de que nós mesmos não passamos de impostores. Evidente que tal sentimento não é muito agradável. Foi exatamente para tentar livrar-me desse incômodo involuntário que decidi visitar meu amigo Simon em sua pequena casa à margem do São Francisco.

Nossa amizade estava calcada em conhecimentos tão abstrusos e surreais, que muitas vezes eu me perguntava de onde ele retirava tantos conhecimentos sutis sobre a realidade e que para a maioria das pessoas era algo totalmente desconhecido ou simplesmente impossível de ser cogitado. Crédulo é aquele que acredita em tudo o que lhe é dito: assim, pensava eu, a humanidade quase toda era muito crédula ao acreditar que esse mundo só poderia ser dessa forma como ele era imediatamente apresentado ou apreendido pela experiência adquirida na infância. Quando colocamos um par de óculos escuros e percebemos e apreendemos a realidade sobre um prisma completamente novo – nesse caso apenas nossa consciência enquanto realizadora da função de protetora do mundo estático em si ergue-se para que o movimento possa ser composto e subentendido – divisamos um novo foco sobre algo de há muito conhecido.

Mas, e aqui surge um impasse, o que indica essa percepção única como fator decisivo de minha escolha por um modelo de realidade? Nossa tendência natural à segurança nos torna conservadores. A própria Natureza é conservadora: porém aqui a indicação é daquilo que conserva a si mesmo enquanto existente. Nós conservamos nossa realidade através de um esforço descomunal de repetições, consolidações e impessoalidade. Tal processo é deveras salutar e é exigido pelo próprio mundo. Se não fosse assim, simplesmente não haveria mundo. O que me intrigava, contudo, era imaginar a simples possibilidade de conhecer outro mundo superposto a esse meu velho mundo conhecido. Eu precisava de um par de óculos escuros para transfigurar a realidade e conhecer suas diferentes nuances. Meu anseio de saltar essa credulidade me colocava imediatamente num impasse.

Foi assim, impulsionado por uma busca bastante diversa, que parti ao encontro de meu amigo Simon em sua pequena casa à margem do São Francisco. Minha decisão era muito pessoal e por isso mesmo eu fui obrigado a partir sozinho. Numa noite de um céu aberto e revestido de infinitas estrelas, parti do Recife num ônibus que balançava sua carcaça deformada por uma estrada sem luz alguma e que sempre seguia em linha reta. Na estrada, meus pensamentos sempre se tornavam ágeis, fluindo com retidão de um campo mental a outro. Minhas costas doíam um pouco devido ao desconforto acentuado dos bancos.

Cerca de oitocentos quilômetros me separavam da casa de meu amigo e a viagem seria longa. Acendi um cigarro e enquanto a fumaça era expelida eu divisava o céu dominado por luzes eqüidistantes e a iluminação sempre confusa do interior do ônibus. Essa tortura voluntária durou até o outro dia de manhã. Numa estação rodoviária perdida no meio do nada, vi-me envolvido por um frio que cortava meu sistema nervoso com ferocidade, obrigando-me a vestir um casaco italiano de lã. Assim que coloquei o casaco, lembrei-me de Marutza, aquela doce criatura européia que havia me presenteado com uma vestimenta tão insólita para mim, mas que agora adquiria sua conformidade mais própria com a realidade. A imensidão do sertão e sua gritante falta de vegetação despontavam ante meus olhos.

A estação era simplória. Segui até um pequeno restaurante situado em seu interior. Mesas de madeira, uma televisão ligada e alguns homens em chapéus de feltro sorviam café e comiam em silêncio. Acheguei-me ao balcão, esfreguei as mãos com decisão e encarei um senhor de barriga volumosa e olhar doentio.

- Eu gostaria de um café com leite, pão com manteiga e um pouco de queijo, por gentileza.

- Só um momento – ele disse enquanto olhava fundo em meus olhos como se quisesse descobrir algum segredo. Fiquei um pouco constrangido com sua insistência em encarar-me, mas logo percebi que aquela atitude compunha o modo de ser de todos os habitantes daquele lugar. Após breves minutos eu já estava devidamente sentado e sorvendo meu café com leite. O pão era velho e o queijo parecia saído de alguma privada. Preferi comê-los sem pensar em seu conteúdo mais aparente. Paguei, acendi um novo cigarro e segui até uma estrada asfaltada.

Sob um sol devastador – o frio havia se dissipado e apenas um calor que trucidava qualquer esperança de vida dominava a região - decidi retirar meu casaco, colocando-o em minha pequena bolsa de viagem. Senti o vento em meu rosto e isto aumentou minha sensação de estar vivo, compartilhando cada momento de vida com o mundo. Na estrada asfaltada – na verdade a única que cortava todo o sertão – estacionei meu corpo numa estação improvisada onde tomei uma caminhonete bastante velha que me conduziria ao meu destino final. Alguns velhos comiam farinha ao meu lado enquanto senhoras de longos vestidos pareciam absortas com suas próprias vidas. De início senti-me um estranho entre aquelas pessoas, mas quanto mais adentrávamos o coração daquele deserto mais um sentimento de propriedade e estabilidade dominava-me. A imanência latente da vida que circundava o deserto aproximava-me de sua personalidade conquanto eu estivesse apto a circunscrevê-lo ante minha consciência como um ser vivo. Quando avistei o rio ao longe e suas pequenas montanhas tomadas por nuvens ligeiras, dei um salto, agarrei minha mala e gritei ao motorista:

- Desce aqui! – minha voz parecia adormecida por séculos.

O veículo parou, revelando a sofreguidão de sua ferragem e a impotência de seu motor. Agradeci ao motorista e segui por uma estrada de barro que levava à casa de meu amigo. Quando eu já me aproximava de seu lar, dei-me conta de que minha mala havia desaparecido.

- Será que a deixei na caminhonete? – perguntei-me sabendo que não haveria resposta.

A vegetação começou a adensar-se paulatinamente, compondo um quadro mais denso, eclipsado em seu deserto por arbustos cinzas e árvores com pele de espinhos. Senti um leve tremor em meu corpo: será que havia algo a ser temido naquele lugar? Tal inquietação afigurava-se estranha, uma vez que eu já conhecia aquele caminho. O que chamava minha atenção é que eu jamais havia notado a presença daqueles arbustos e árvores tão espectrais cercando o caminho que levava à casa de Simon.

De súbito, uma sede intempestiva elevou-se, atingiu uma culminância tão despótica que eu pensei que aquilo só poderia ser próprio de algum pesadelo. O clima de extrema aridez acentuava minha sede. Pensei em corais, arrecifes e um mar de ondas corrompidas pelo azul do próprio céu. De um horizonte que dragava em seu refúgio mais secreto todo o universo, algo produzia essa sede ingente que trafegava sorrateira por todo o meu corpo. Só um copo de água era o que eu parecia implorar. Não sei até que ponto a insolação ou a falta de água pode causar uma ilusão ante a mente. O que me espantava era o fato gritante de tal sede emergir do nada e alojar-se com tamanha potência em algum local que eu mesmo não conseguia visitar. Tentei me controlar: respirei profundamente, acendi um cigarro e segui minha caminhada que parecia jamais terminar. Aquela sede heteróclita usurpava meus pensamentos, condenando-me ao seu poder decisivo, o que acentuava a decadência quase espontânea de minha vontade. O cigarro causava-me náuseas e o caminho parecia uma estrada sem fim. Comecei a correr desesperadamente em direção à casa de Simon cujo telhado sempre vermelho de terra eu pude divisar com segurança. Quando cheguei à porta de sua casa percebi que alguém estava deitado numa rede posta displicentemente no terraço. Subi alguns degraus que conduziam ao alpendre. Vi o próprio Simon deitado na rede calmamente. Sua expressão parecia muito tranqüila e isso, de fato, contrastava com minha angústia.

- Preciso de água – implorei.

Ele parecia já saber de meu desespero.

- Você vai encontrar água na cozinha – ele indicou.

Saí correndo para a cozinha. Não sei até que ponto aquela sede intempestiva conseguiu dominar minha realidade, mas cheguei a imaginar que algumas meninas estavam fazendo sexo de forma desesperada em dois quartos mal iluminados da sala. Na cozinha, abri a geladeira e tomei duas garrafas de água de uma só vez. Minha surpresa foi muito maior quando minha sede, em vez de saciada, revolveu-se com violência, aumentando seu diâmetro. Uma menina de longos cabelos vermelhos surgiu na cozinha.

- Beba essa vasilha. Tem bastante água aqui - sua voz pareceu-me transtornada.

Verti todo o conteúdo da enorme jarra, mas minha sede parecia intransigente e decidida a habitar em meu corpo para sempre. Retornei ao terraço onde o velho Simon continuava balançando-se em sua rede com a maior tranqüilidade deste mundo.

- Simon – implorei – ajude-me. Estou consumido por uma sede terrível. Acho que vou morrer. Ajude-me. Ajude-me, por favor, faça algo para me salvar – minha voz implorava. Minha dignidade fora lançada ao espaço. Eu deveria parecer o homem mais patético do mundo, já que meu amigo não desfazia seu ar de tranqüilidade nem seu sorriso sempre largo.

- Nana está lá no quintal. Ela tem algo para você – sua voz soou como uma ordem. No meu desespero que se agigantava mais e mais, eu não tive dúvidas e sai correndo para o quintal de sua casa.

Alguns pés de pequi, com suas folhas esverdeadas, tomavam o quintal e escondiam o rio que serenava em seu curso milenar. Uma horta caseira coleava-se numa ordem singular: milho, feijão, café e plantas medicinais. Minha sede já havia me tomado de pânico; domava meus pensamentos e jogava-me de lá para cá como se eu fosse apenas um instrumento de sua existência voraz. Haveria algo capaz de me saciar? Consegui vislumbrar a silhueta esguia de Nana à sombra do pé de pequi.

- Nana – gemi – ajude-me. Estou morrendo de uma sede monstruosa! Ajude-me! Por favor, ajude-me! – eu me humilhava e não sabia disso.

Ela olhou em meus olhos e esboçou um sorriso de compreensão e compaixão. Meu estado deplorável não parecia lhe indicar nada de especial ou, ao menos, a necessidade de tomar uma atitude mais enérgica.

- Fique calmo – ela me disse, tentando serenar meu desespero – Será que você não sabe que não devemos colocar nosso destino nas mãos dos outros?

Sua voz suave e o poder de suas palavras estagnaram o tempo ante minha mente. Minha visão turvou-se e sua silhueta, antes tão bem definida e segura, parecia evolar-se a partir de um círculo que aumentava centrado em sua circunferência que também se avolumava numa progressão assustadora. Senti-me impotente e tive vontade de chorar, mas consegui me controlar. Ela era apenas uma menina. Fiquei espantado.

- Venha – ela me disse com uma voz bastante suave – Tenho algo que meu pai quer que você beba.

- Simon quer que eu beba o quê? – minha sede fazia com que minhas palavras tropeçassem umas nas outras.

- Venha comigo.

Ela me tomou pelas mãos e seguimos até à margem do rio. Fiquei tentado a beber da água do rio, mas um asco superior à minha consciência – assim eu acreditei naquele instante – repeliu meu anseio e permaneci em pé, tremendo como se um frio nórdico houvesse invadido a região.

- Beba esse chá.

Ela me passou um copo talhado em madeira e que continha um chá denso. Sua cor de argila escura aumentou meu pânico. Mas eu sabia – e isso nós percebemos em nossas situações limites – que não havia escolha: ou eu bebia aquele chá de uma só vez ou já estaria desde já condenado a viver uma vida sedentária para todo o sempre. Minha resolução deveria ser determinada naquele exato instante. Peguei o copo e sorvi todo o seu conteúdo de um só gole.

Minha sede acalmou-se logo em seguida. Nana, não sei como, desapareceu e fiquei sozinho à margem do rio. Um sentimento incontestável de retorno foi erguido num altar mais próximo onde eu já me reconhecia como um ser humano. Minhas misérias pareciam distantes, veladas por signos sublimes de um mundo muito mais íntimo. Minha alegria, contudo, não durou muito. Das margens do rio vi emergirem dois grandes reis astecas: isso era impossível, pensei! Eles traziam uma imensa arca que continha folhas e cascas de alguma planta sagrada. No interior da arca percebi nitidamente um escaravelho gigante que andava de um lado para outro numa paciência filosófica. Isso é uma alucinação produzida pelo chá, pensei enquanto tentava me acalmar. Minha respiração, antes sôfrega e perdida, centralizava-se paulatinamente num ritmo mais nítido e particular. Os reis astecas falaram algo que não compreendi: apenas pude perceber que, devido a algum conhecimento que sempre esteve em mim, as cascas e as folhas eram a substância prima – a prima matéria – do chá que eu havia sorvido com tanto desespero. Minha sede, antes imperiosa e arredia, desaparecera com a mesma medida em que havia surgido. Sentei-me sobre um aglomerado de pedras que margeavam o rio e, inebriado com minha própria distância da realidade, dei livre curso à minha nova habitação temporária. Meus membros pareciam puxados por uma força gravitacional invencível. Presa de uma comiseração diluviana, de um sentimento fundamental de vida, minha mente via-se obrigada a registrar todo o passado da terra como história, como facticidade superior de nossas existências. No clarão benfazejo de uma insuportável claridade, contemplei dois gênios da humanidade como crianças: o primeiro, envolto por símbolos ancestrais, armas potentíssimas e ainda portando uma enorme barba, chorava no seio de um berço todo esculpido em bronze; o segundo, careca, envolto por um terno cinza, parecia-me ainda mais infantil: ambos eram o mesmo e isso assustou-me. Dois gigantes, como se saídos de uma pintura de Rafael ou Miguelangelo, portavam machados afiados: suas tarefas eram bem delimitadas: destruir os círculos de símbolos e atrocidades que também me tomavam num ciclo vicioso de atitudes e esperas inúteis. Assim, crivado de tanto desespero, principiei a vomitar. Meu vômito, sempre espesso e doloroso, era expelido com angústia e, o que me era bastante estranho, um prazer único. Quando minha visão tornou-se menos turva, percebi que eu estava vomitando fardos de cigarros: como fardos de fenos amarrados e prontos a serem levados a uma estrebaria qualquer. Minha garganta, acreditei, deveria estar sangrando. Foi quando, como num sonho muito denso em que nós nos vemos tomados por uma verdadeira sensação de realidade, compreendi que tudo aquilo era só um enorme retorno. Eu estava no antigo pátio de minha casa quando eu era ainda uma criança. Divisei as casas, as varandas, as plantas que cercavam o único jardim daquela rua sem saída e senti-me desamparado e, não posso negar, um pouco idiota. Eu tinha, então, apenas dez anos de idade. Estava brincando alegremente com alguns brinquedos quando surge minha mãe. Olhei-a com uma extrema felicidade: ela, de fato, havia falecido de uma doença terrível há dois anos atrás. Corri até seus braços e, envoltos num grande abraço, percebi como eu era pequeno diante daquela mulher, e aqui eu quero dizer pequeno mesmo: ela tomava-me em seu colo como se eu fosse um brinquedo.

- O que você tem feito de sua vida, meu filho? – sua voz revelava um grande pesar – Será que todo o amor que eu sempre devotei a você não foi suficiente para que você encontrasse aquilo que lhe seria mais peculiar, mais útil? Será que são necessários tantos círculos, tantas fugas? É a partir daqui, desta sua idade, que você tem que escolher quem você realmente será. A escolha, como sempre, será irrevogável. Como você não a fez antes, eis que lhe é dada esta única e sublime chance. Escolha, então, o melhor.

Meus olhos encheram-se de lágrimas e comecei a chorar copiosamente. Ela, em sua eterna doçura, alisava meus cabelos, cantava uma bela canção para que eu não me sentisse tão triste. Como seria possível tanto amor, tanta doação em um único ser? Eu estava absorto com sua grandiosidade e a mesquinhez absurda de minha vida. Num lance contemplei toda minha vida: passado, presente e futuro. Tudo estava dentro de uma única esfera e minha escolha jazia impávida sobre a mesma num silêncio próprio das catedrais e dos oceanos. Meu choro inundava os rios, os mares; a terra era banhada com minhas lágrimas. Desfraldei todas as minhas ilusões e gritei em desespero. No fim de meu grito surgiu, novamente, o mesmo rio à minha frente. Entrei em suas águas e, assim como Heráclito, eu era purificado pela constância impetuosa da vida e da natureza. E não era o mesmo, e só silêncio e quietude domavam o ar já transpirado em si mesmo de tanta dor e mistério. Cuspi sangue e retornei à casa de Simon. Ainda deitado em sua rede, ele agora parecia mais sério, na verdade podia-se falar numa expressão atarracada, sublime em sua gravidade.

- E então – ele falou – já fez sua decisão?

- Você sabe disso também? – perguntei sem compreender ou poder associar o que era realidade ou ficção. Havia, realmente, uma fronteira ou essa mesma fronteira era a própria ilusão?

- O mundo todo é sempre um único e grande livro.

- Sim – eu respondi – já tomei minha decisão.

- Então?

Meu corpo estremeceu. Mas eu sabia, e isso era inegável, que minha escolha era a única possível. Um silêncio secular vibrou inopinadamente sobre nossas cabeças. Minha voz, antes fragmentada e escassa, soou como se um rei poderoso houvesse decretado a liberdade de toda uma nação.

- Então? – ele repetiu.

- Vou me tornar escritor.

Simon permaneceu em silêncio, mas, mesmo assim, pude perceber um pequeno e leve sorriso que se esboçava nos cantos de seus lábios. Agradeço a minha mãe por sua ajuda. E, quanto à minha decisão, foi o que fiz.



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sexta-feira, 16 de julho de 2010

A feira

    I




Do contato inextinguível, ou quase, de minhas andanças pelo Alto Sertão de Pernambuco, da Bahia e do Ceará, retirei o sumo próprio deste conto. Do contato com curandeiros e com a Amanita Muscaria, um alucinógeno que estruturou uma forma mais concisa ao meu entendimento, vislumbrei a materialidade existente na feira como ao movimento que buscava compreender.

Tudo isto colocou minha alma numa situação diletante, quase como uma estagnação frente às teorias digeridas no seio da solidão que se fortificava, e como a mesma coisa. Eu abandonara o criticismo pouco próprio de Kant; o neo-racionalismo de Carnap; a antropologia estatal de Lowie e Lévi-Strauss; a poesia hermética e transversa de Mallarmé e Kazantzákis; os silogismos inválidos de Cioran; o etnocentrismo exacerbado de Joyce e as cores interioranas de Guimarães Rosa. Mas eu bem sei que todo escritor, e há mesmo quem os tenha sob o vórtice do apreço, já que penso nisto em momentos de amargura, está sujeito às críticas rancorosas e enfadonhas, bem como à eterna paixão de todas as pessoas que os têm em mira. Eles passam pelo crivo da imolação, são dígamos, esmorecem e morrem. O nível exato seria, para mim, ressalvando o caso da paixão que é o mais intenso e sincero, manter o fio principal da escuta atenta.

Mas as viagens são como um bálsamo, um vaticínio único, a carga insuperável, ou quase, de explosões catatônicas em nós mesmos. É a medida que nos transporta a vislumbrar, de fora-nuto, os conceitos e categorias da essência do movimento inerente. Se algo não nos afeta, em certos casos, é lógico, torna-se mais fácil manter o fio da escuta atenta.

O Sertão foi a antítese das categorias subjacentes e difusas de meu entendimento, onde o centro é sempre estreme e fecundo de dilúvios os mais sombrios: a cáustica digestão do sol em suas faces. E o movimento é o centro e poucos o perceberam como tal, pois o desvelar é um ato contínuo e incessante de todas as coisas.

Todavia a feira transporta-me a níveis intrigantes e instigantes, apesar de não ser a antítese do sertão, porém se desloca nos contornos da materialidade do desvelar como uma irmã, uma espécie que outorga fins de serenidade peculiar à sua essência plurifásica. em mim o movimento.

Este conto foi escrito em cinco dias. Creio que houve uma catarse interior, bem provável será notificar o retorno à uma serenidade própria que a literatura concede-me. Por ora trata-se mais de uma verificação do que um mero exercício literário. E isto devo à feira, ao torpor ecumênico de sua existência, entendida basicamente como uma inércia moral, às explosões sutis das análises lingüísticas que a mesma fomenta. No dizer de Eggonópoulos, e citado – tão poucos – ( os raros ).

Este conto é a fusão.




II


Houve um tempo em que minha alma regozijava-se facilmente. Agora, imbricada com espelho sinistro que busco verter com ódio para compreendê-la, ela tornou-se distante e pouca, como esta, seca. Outrora era a poesia, com suas mentiras bem disfarçadas, que retinha com acuidade o meu rancor. E, muito antes, em estados de alardes estúpidos e apogeus insidiosos, houve filosófica dedicação ao mundo, bem como uma vertente extirpadora... essa cria de rancores envelhecidos.

Aqui, eu. Caedo senta-se ao meu lado no ônibus. Jezebel deve estar distante, algo que possa – com certeza - . O mercado aproxima-se. Sua silhueta de estanho – inegável. Atropelo roupas nas mulheres com cestas repletas de verduras o verde penetrante do coentro isto do ônibus. Em pleno centro nervoso da burocracia do Estado onde empresas em prédios quase gigantescos elevam suas preces à economia, ao poder público e privado, às legislações tributárias, às imbecilidades impetradas pela União, na avenida principal onde eu e Caedo descemos apressados do ônibus, velhos decrépitos, velhos enrugados, velhos espalham nas calçadas – com uma manta de plástico negro – a feira.

Umbelíferas, Compostas, Solanáceas, Liliáceas, as cores, a anarquia popular frente a si mesmos, diante da compostura decadente de suas misérias. Os gritos, o sol ergue-se virulento, trespassam a multidão – e chegam.

- É melhor cruzarmos agora – Caedo.

Eu sigo.

- Vamos – respondo.

Zunir. muito perto. uma madeixa, penso eu. de repolhos. uma trança de alho dependura-se fielmente na entrada da mulher – sua casa. Aqui não vemos e medimos as coisas, elas pensam e locomovem-se por si mesmas, para si, em si, resolutas evoluem com tranqüilidade ou algazarra. A feira.

A feira é um ser vivo. Nada morto. cada transpiração é indicada por uma cor, um gesto, um grito, e eu a percebo, percebo a evolução drástica da transpiração – basta vê-la – para poucos.

- É naquela rua ali, não? – Caedo. Os andaimes de ferro soerguido do antigo mercado destruído.

- Sim. aquela mesmo – digo. perto da rua.

Dois cantadores, a tradição dos chapéus denota-os. Eles seguem. poucos metros de nós. as violas dependuradas com segurança nos pescoços – trajes. Cuentro, diz. Uma barraca erguida sustentada na matemática do ferro e da madeira, onde cebolas misturam-se com imensos rolos de fumo, o olfato denuncia, distância, é fácil, vergastando o paladar, obliterando meus olhos, perante há de uma saca de urucu – a cor, agora – e pacotes de sena em plásticos transparentes – perante a existência.

Adentrar a feira, no torpor ecumênico de sua existência, é uma tarefa hermenêutica; o trepidar dos passos é ecumênico; a feira é como nenhuma religião e em si mesma é a própria; ecumênicas são as composições truculentas de suas faces, o passo em pressa o diz solenemente, diz também das divisões não expressas, dos arranjos, da beleza elísia do lugar. Adentrar a feira é como em lugar nenhum.

- Olhe a estrutura do mercado! – Caedo.

Sim. a estrutura é a própria forma.

- No retorno – falo.

O relance do vestido florido explica-me que tropecei no pé descalço de emaranhados trança de mulher. A rua é um delineador. é a marca não firmada de limites. casas seculares defloradas pelo lodo impróprio e pelo cinza narcótico dos arredores. janelas mais e mais fotografadas no elevar demudado do mofo entranhado em nossos pulmões e é como coisa alguma. sombras tornam-nas. barracas roçam os edifícios, é de suas essências o escorar. homens por detrás das ervas, cascas das plantas é o que é.

- Aqui – Caedo.

Dobrar e em frente. As primeiras barracas que se perfilam. A dobra foi o impacto verdadeiro. Da cidade meridiana aportamos no fluxo. Por delimitações. Muitas pessoas atravancam-se nas ruas estreitas, bodegas e mercados, nas barracas de ervas.

- Para cálculo – relembro.

- O que é necessário? – Caedo questiona.

- Eu sei o que é – olho em reta desfocada os níveis. as ervas eclodem seus poderes em todas as direções, e é bem mais importante. A feira. A feira delimita-se com a metrópole, apesar de ser ela mesma os recalques. É possível ver os sacos de panos com boldo, erva-doce, camomila, canela e todas as ervas festivas, dizia-o, apenas o gosto. Plaquetas de madeira aceleram as impressões: capim-santo é 200 o mói. É estreita a rua onde empurram. Além, a verdade.

Infinitas propriedades amontoam-se na ordem da mulher por cima da barraca decrépita que aflige a paciência do estranho que não entende as formalizações dos labirintos da feira em partes de ervas e plantas.

- Bom-dia – o sol. A mulher olha-me com indiferença, porém não tanta. Caedo escora-se perto das cascas de imburana-vermelha, acende um cigarro sem muita preocupação: analisa o fósforo e joga-o ao chão e observa.

- A senhora tem espinho-de-cigano? – Da raiz. particularmente – diferir. olho suas roupas, como numa contemplação.

- Claro que tenho, meu fi – remexe as propriedades. Baratas se estremecem e fogem por sobre as ervas. as frestas são seus recantos e lá estão protegidas. O verde próprio e os espinhos pequenos e esbranquiçados que se entramelam nas raízes é a coisa em si. a potência é emergente. Seguro a erva com cuidado para não me furar.

- Me dê um cigarro – estendo a mão livre e Caedo passa-me um cigarro. acendo-o e fito a curandeira: “preciso da casca do jenipapo-brabo”.

O movimento roupas da mulher escusa resmunga quase inaudível onde é que elas estão? Acentua seus olhares e ajeita os óculos na cara suada, pequenas memórias sinalizam – aqui está – ela retorna do amontoado e ergue em arcos com as nuvens a criação de pedaços de cascas amarelecidas.

- Isto é jenipapo. preciso do jenipapo-brabo – retruco. A impressão é imediata e seu semblante é a expressão nítida da compreensão, apesar do deslize que foi temporário ela se debate entre plantas na anatomia interiorana dos retrucados nós das raízes, onde evolar-se é crucial e traz à margem do meu campo de visão as cascas corretas e temos que seguir pois falo em quebra-faca e, um tanto agastado, os limites da espera que é o centro, esmolece e já podemos nos conter.

- Quebra-faca – o amargor me vem à boca. rápida mulher e seguros movimentos. movimentos de pedra. a mulher que cruza – é como Jezebel. perpetuar a mulher que não está ao meu lado. estão de sufixos. a velha é o limite para o êxtase, confunde-se propriamente perto, o mais perto possível da proximidade.

- Aqui - estende. destrinchando com olhos a poeira.

Coloco o pouco dinheiro desguarnecido e fita-me muito por pouco. sinais com as mãos para os lados. persiste fluentemente e a feira está disposta aos nossos desesperos inscientes.

Quenopodiáceas. Labiadas. cruzamos pimentas que denotam e estrangulam o ar com mãos de vermelho. piperáceas. cucubitáceas. manter intacta a região dos lábios – vamos tomar uma cana – Caedo sugerindo. – Certo – o sentido das barracas de cerveja e aguardente é o trajeto das carnes. Tripas e lombos que dão um significado único às ruas. o sangue desmancha-se em pequenos rios nas calçadas. gordo um homem em bigode recolhe pedaços inteiros de carneiros decepados as pernas ergue e coloca ao lado das carnes-de-sol. O sal próprio e acrescenta pimenta aos pés-de-porco, cancioneiro antigo, popular em excesso as tripas de bode e legumes cozidos. – Vamos nos sentar ali – Caedo percebe odores e sentamos onde uma cerveja é colocada. Pedimos charque com macaxeira e os homens se distinguem. podemos falar. quando uma velha, avental manchado de sangue, estraçalha o pescoço de uma galinha branca e respinga sangue em marcas e gritos e o gemido do animal comemos a charque e o aguardente retira a impressão de nojo para seguirmos.

Caedo. chegando na inóspita chuva modorra da tarde. O entardecer são parestesias, os aspectos de uma entrada e solavancos procura o dinheiro nos bolsos e são apenas três cervejas e um pouco de cana.

- O poema divide-se em cenas e atos – Caedo.

- Sim – eu nos limites e incito-o.

- É a última. cena um. pretérito. o encerramento. os olandeses caminham por uma rua silenciosa, yndo à villa de Igarassu. cena dois. É tarde, bem tarde em Olinda. cena três. grandfinale. em Holanda alguém olha uma tela. uma paisagem do Recife – Caedo.

Caminhamos nas modalidades da chuva pretérita. são os olandeses, ele diz. e é bem certo.

Então, ali, naquela tarde oniscilante, que deambulava o dia, como que um espasmo intempestivo, um sentimento de desespero fulminou minha alma; era como toda a indiferença que me perseguia e me colocava distante do mundo, ali, onde a feira demarcava as coisas e era assinalada por elas, eu estagnava-me ante a densidade gordurosa das coisas, a

densidade estúpida e grotescas dos

olhos, e era como isso. E espantei-

me e estava tremendo, uma vez que talvez seja a loucura o homem que nunca se reconcilia com o mundo e pensei na beleza de Jezebel como uma forma de manter-me na superfície, de manter o desespero distante e deixar-me intacto.



III


§ Fechei o livro de Gligoric e abri a carta vinda do México. Arruanjez escrevera-me antes, análises de Watts e Norbenkööld sobre a Amanita Muscaria e as estruturas totêmicas das tribos mexicanas. Arruanjez era um grande amigo e compartilhava de minhas especulações filológicas sobre a feira, bem como era um antropólogo cubano que desistira da ortodoxia metodológica das ciências exatas e humanas e decidira ir ao México estudar as várias formas de Psilocybe e a Amanita Muscaria: “o umbigo do mundo”, numa compreensão e visão do mundo (Weltauschauung) que ele próprio ditava estar aberta a qualquer um. Ele escreveu-me várias anotações, longos textos de estudos orgânicos e psíquicos produzidos em especial pela ingestão da Amanita. Uma carta de trinta e oito páginas, escrita com letra imprecisa, impressionou-me em particular. Arruanjez relatou o seu encontro com dois antropólogos e um xamã que conhecia os processos da Amanita. Os antropólogos, um francês e um indiano, também viajavam pelo mundo em busca de novos sentidos para a antropologia e decidiram ingerir o cogumelo assim como Arruanjez.


§ Acertados os pontos necessários para o ritual, todos ingeriram o líquido contido numa tigela de barro: o chá borbulhante.

§ O francês foi o primeiro a ingerir o líquido, seguido do indiano e do xamã que passou a tigela para Arruanjez que sorveu o líquido defectível com apreensão. Ele crê que o francês foi o primeiro a ser afetado, pois o mesmo começou a gritar e a girar, a face transtornada por algo horrível, depois se sentou e falava aos berros: “Je ne suis pas humain! Je ne suis pas humain!”. Enquanto isso, Arruanjez já começara a perder a noção mais íntima de sua vida e afundava em desespero o mais estranho para ele, descrevendo-me os parâmetros de sua alucinação com a realidade de uma maneira inteligível.

§ A carta terminava com um convite: Arruanjez estaria no Brasil em poucos dias e convidava-me para ingerir a droga. Os trabalhos e os dias estavam para começar, eu bem sabia.



IV

RÁGA : DA INGESTÃO



Natimorto desespero da ingestão da não inalação. Inulto percorre meus sentidos, ó forças que revelam, os navios por detrás da vermivermelha peça silente que estão pertos e devo deitar-me.

Asfixia das essências como categorias das formas das estruturas analisadas e operantes entre as outras estruturas e consigo mesmas enquanto modo operante de ser da substância onde o mundo mesmo ergue a ilusão de uma formalização das categorias, sendo o eixo em que se pensa o estado de coisas como maneira própria de relação, onde a figuração desprende-se da realidade para inserir o em-si como substância objetiva.

Onde estás tu, sentimento destro e incomensurável, que amplias a compreensão e eriges fielmente novas sombras? Sorvo novo gole e não percebo os limites de minha loucura nas casas de tetos negros por meus pensamentos da mulher presente e necessária, numa tragédia conforme, em que tem o centro em toda parte o sentido prisco, inúteis, todos, no divergir de ácio, como complemento, esqueçam essas tolices, apregoa enorme esguelho que não entende, mas na superação.

Conduzo-me como louco, como Gogol e Nassar, nas pequenas cercanias do Recife, perante mercadores de rostos incisos de frondas estranhas para as florestas esfumadas e o xamã está tão próximo que o toco com dedos de aura sinistra para manter o pacto e sentir o fio íntimo que há muito perdi. O burrico está morto de morte inalada e as estradas de Bodocó surgem e não sei ao certo como fui ter-me ali, a guerra prolixa de Bodocó com cangaceiros e o corte da faca está travado e não sairá mais de mim o sabia ao certo como homem e a certeza é tão impotente que giro e falo e Caedo corre como louco e perco sentidos de insolência ante divagações e será sempre como dor orgânica o que me mata todos os dias.



Trabalhos: densa, densa, densa, contornei a igreja e são arcos de geometria e de ângulos aglomerados, sólidos e quase perfeitos. vazias ao lado dos cartazes as janelas da realidade concretiva que absorve e Arruanjez incita pânico. latinos de olhos sobranceiros.



Dias :De soturno esbraveja quase longo para seus sorrisos acolhedores, meu telegrama esquálido desjejum, esvoejante, é verdade, vértebras peitorais na idiotice acumulada, história para meninas, reclama eufônico, não, exclama involuntário, desdém como provável solução, nos dizeres mais antigos dos trabalhos.



RÁGA : DA LUCIDEZ


Arruanjez e Caedo. Jezebel ficou na minha casa na parte velha do Recife. Espalmei minhas mãos em suas pernas e percebi o sol fortificando os calçamentos e os tetos das construções seculares. para o México, disse-me Caedo. Agora, quando sinto a densidade quieta e macia de Jezebel, pressinto a distância do desespero e da loucura. Peguei uma xícara de café e acendi um cigarro enquanto Jezebel recostava-se em linha correta perante o sol.

- Eles devem ter chegado agora – Jezebel revira os olhos ao falar e é como um bem-estar inigualável a presença.

- Sim, devem ter chegado.

- O que você vai fazer?

Demarcar forças e reuni-las, pensei.

Homens em trajes de manga descarregavam caixotes. A calmaria involuntária da rua deixou-me tranqüilo e pensei nos dias, na solução que sempre me escapava e tocá-la foi como o traço perfeito da minha vida. Jezebel estava linda, a solução pacificara meus lamentos, as sombras de pavor esvoaçavam sem sentido e o vigor do entendimento é a essência para minha compreensão. homens descarregavam caixotes, Jezebel contempla os desenhos da escala solar, as ruas afugentam os dilúvios. Não como forma de desespero ou tédio, porém a marca infindável de minha obstinação pela cura. Este conto é a fusão.



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