sexta-feira, 25 de junho de 2010

A Ilha Branca

                          Magnum, O Asclepi, miraculum est homo.


Os muros negros do templo estavam adornados com flores profusas que exalavam um odor tão profundo que éramos imediatamente transportados a um mundo mais sublime. Do pequeno monte onde estávamos, cercado pela grandiosidade das muralhas e pela altivez de um céu aberto, podíamos divisar a calma da vegetação, o branco da areia, as flores abundantes que serpenteavam a região e o mar sempre silencioso que banhava Crotona. Poder-se-ia dizer que estávamos ansiosos, e essa ânsia sutil era justificada: nosso venerável mestre estava de retorno de sua longa jornada às terras do Oriente. Enquanto ele se demorou em sua peregrinação para espalhar luz aos homens, imaginávamos como seriam esses países habitados por seres fluídicos, com longas barbas entranhadas em suas faces escuras e com olhos sempre voltados para um espaço pluridimensional.

Quando no início daquela tarde corrompida em sua brancura secular pela fúria do sol uma embarcação atracou no porto de nossa amada ilha, sentimos a presença de nosso mestre e saímos em debandada em sua direção.

- Pitágoras chegou! Vamos, apressem-se! – gritou entusiasticamente Endropoulos.

Seguimos até a costa onde o barco atracara. Alguns marinheiros ajudavam os tripulantes a descerem em terra firme, carregando seus utensílios e alguns objetos vindos de paragens distantes e enigmáticas. Um marinheiro egípcio, de cabelos revoltos, ombros largos e olhos vivos, ajudava nosso mestre a descer. Uma aura portentosa irradiava de seu corpo. Permanecemos em silêncio respeitoso quando ele pôs os pés em terra, mas no fundo tínhamos infinitas questões e dúvidas que desejávamos fazer ao nosso mestre recém-chegado. As nuvens alvas navegavam o horizonte, assimilando a tez esverdeada do mar e o azul imperioso deste mesmo céu revoltado. Pitágoras desceu em silêncio e seus olhos transpiravam uma quietude tão volumosa que nos questionávamos como era possível tamanha paz e equilíbrio.

Suas longas mãos contrastavam com sua barba rala e seus cabelos negros, caídos nos ombros. Estávamos ao seu redor como se nosso assédio erguesse em gesso mais puro uma escultura viva, sólida. A brancura estrangulada da areia da praia era consumida pelo movimento sempre silente do mar, compondo um quadro ainda mais fantástico quando mirávamos o semblante etéreo de nosso amado mestre. Que felicidade e que prazer eram aquelas, ó deuses, que sentíamos em nossa juventude pelo simples fato de termos a presença de um ser tão sublime à distância de uma mão? Éramos privilegiados - bebíamos da fonte imorredoura onde amor e razão encontravam-se numa única matemática universal. Elaborando gestos precisos, iluminados, nosso mestre segurou nossas mãos e subiu o monte que conduzia ao templo.

Os marinheiros ficaram descarregando os mantimentos que pertenciam aos outros tripulantes. Todos eles também estavam ali para serem admitidos em nossa escola de mistérios, ansiosos que estavam por beber desta mesma fonte. Lavado pelo mar, adornado pelo sol e tomado em sua pureza pelo azul de orvalhos da terra, o barco ancorado ficava para trás e perdia sua importância em nossas mentes. O mestre ergueu os olhos, contemplou em silêncio o pórtico do templo e o mármore incendiário das esculturas dos deuses e disse de forma branda:

- Cozinhastes o galo que havíamos reservado a Ártemis, Sakálas?

Rimos estrondosamente com a observação do mestre. Sakálas sentiu-se constrangido e seus olhos denotavam a grandiloquência de sua vergonha. Como era possível que o mestre soubesse daquele fato estando a mares de distância? Nossos risos confundiam-se com nossa admiração.

- Peço vosso perdão, venerável mestre – implorou agudamente Sakálas.

- Não é a mim que deveis dirigir vossos clamores. Vai, purificai-vos, sigais para o templo e em oração profunda peçais à Ártemis que vos perdoe. Não arranqueis flores que formam coroas.

O discípulo sentiu-se imensamente aliviado e, ato contínuo, saiu correndo para as salas de banho aonde com certeza iria se purificar e preparar os ritos sacrificiais. Na entrada do templo, protegidos por um enorme portão, víamos rosas vermelhas em botão e cravos negros que acentuavam a moldura deste Olimpo particular, mesclado em sua essência votiva pela pureza e luz de nosso mentor e amigo. Sentamos todos nos bancos do imenso jardim. As sandálias negras e as vestes brancas de nosso mestre resplandeciam a profundidade filosófica de seus olhos e delimitavam suas feições mais próprias dentro de forças elementares desconhecidas de todos nós.

- Mestre, diga-nos, como foi vossa viagem ao oriente? – Paliánakos era o discípulo mais velho e, por isso, mais próximo a Pitágoras. Todos o tratavam como a um irmão mais velho, sempre solícito e disposto a dirimir nossas dúvidas mais profundas.

Iniciando uma narrativa tortuosa sobre mares desconhecidos e cidades do Egito e do Oriente, o grande Iniciado de Samos levou-nos, através de suas palavras, aos reinos mais elevados da terra. Contou-nos sobre sua imensa tristeza de não poder visitar sua terra natal, perseguido que era pela loucura e despotismo de Polícrates; falou-nos da escola que seus discípulos haviam construído em Siracusa; dos Hierofantes do Egito e da sede imensa de Deus que os sábios do Oriente carregavam em seus corações. Ele irradiava luz e falava da imensa bondade dos deuses ao nos darem essa terra magnífica que era a Magna Grécia com suas florestas abençoadas pelos deuses e seus rios sempre cristalinos e áureos.

A cadência sintética de sua voz começou a me transportar para um mundo próximo, habitado por minha imaginação e memória. Lembrei-me com felicidade dos meus primeiros dias como discípulo e, o que era ainda mais importante para mim, o momento em que tive a oportunidade de ver e ouvir nosso mestre explicar para todos como funcionava a unidade. Dentro do templo estávamos abrigados da chuva volumosa que caía sobre a ilha e, protegidos como estávamos, podíamos ouvir atentamente as palavras proferidas pelo mestre.

- O Um é o todo onde não há divisões. Só o homem puro em sua consciência pode contemplá-lo e não morrer. Por seu amor infindo ele divide-se, doando sua unidade à pluralidade dos mundos. Toda divisão gera fraqueza e toda integração gera força. A santidade do Quatro reside em ser ele o Três em Um, a essência da pluralidade que atinge o Um. Só de Nove para Quatro pode o homem regenerar-se e sorver, ó deuses altivos, deste néctar salutar que embevece nosso paladar e alimenta nossas mentes. O Um é Quatro como dádiva e presente. Bebei, ó discípulos, bebei desta fonte inesgotável que é o Um e assim jamais morrereis, pois há vida em tudo o que é Um e morte em tudo o que é Dez.

Sentado em seu pequeno banco, ele empunhou um delicado instrumento musical elaborado em nossa escola e que servia como uma ponte entre suas idéias mais abstratas e a capacidade limitada de nossas consciências. Tocou a mesma nota várias vezes e esperou que esboçássemos alguma reação. Nosso silêncio indicava nosso estupor e credulidade.

- Tudo é vibração. Assim o Um doa sua essência ao mundo. Do Não-Ser ao Ser que se torna Vir-a-Ser e que se realiza plenamente em sua unidade – suspendeu suas palavras e entoou uma melodia simples no instrumento – A harmonia musical nos mostra que há correspondência em tudo no Universo. A harmonia é a balança deste mundo e o pensamento do Um. Feliz do homem que possui um coração ardente pelo Um. O que era transcendente torna-se manifestação, mas recolhe-se infinitamente em sua unidade e silêncio.

Pitágoras parecia absorvido por suas idéias, como se as musas houvessem visitado seu intelecto e despejado, sobre sua cabeça proeminente, um néctar salutar e perfumado como rosas fortes enlevadas por uma melodia esquecida de um sátiro particular que toca um velho ditirambo azul.

Sentíamo-nos suspensos com sua presença altiva, sua força evocada a partir de seu pensamento e consciência. O mestre encerrou sua preleção, ergueu-se de um só movimento e deixou o interior do templo levando consigo o instrumento musical. O interior do templo era retangular, com estações bem delimitadas em cada ponto cardeal e um imenso altar postado a Leste, erguido em pedra branca, adornado com imensas colunas entrelaçadas e frisadas em suas bordas superiores.

Os guardiões conduziram nosso mestre à antecâmara do templo e nos ordenaram para ficarmos em silêncio e de olhos fechados. Não posso afirmar com certeza quando aquilo começou: foi como adentrar um sono profundo que, de súbito, invade nossa mente e nos guia por seus caminhos fantásticos, por seus corredores tenebrosos e insinuantes onde tempo e espaço são referências descabidas. Percebi que o mestre estava ao meu lado, mas isso era impossível, não podia ser real. Ele falou ao meu ouvido: “Lembre-se!”. Senti-me impulsionado a gritar, a sair desesperadamente daquele sentimento incomensurável de claustrofobia e morte. Sua voz, entretanto, avolumou-se, criou espaços em minha mente e, por fim, dominou minha compreensão da realidade.

Anúbis, o deus com cara de chacal, apresentou-se ante minha visão em toda sua potência e sabedoria. Ele falava, mas eu não o compreendia uma vez que sua voz soava como uma escuridão impenetrável. Segurava uma cruz ansata em sua mão direita, sinalizando que a vida deveria ser conduzida com retidão e, com a mão esquerda, portava um imenso bastão, sua vontade sempre reta e firme.

Mas súbito irrompe Maat em sua ascensão última, translúcida, quase imaterial. “Levanta-te, ó alma mortal, eis que o momento de teu julgamento se aproxima!”. Tremi e comecei a soluçar como uma criança desamparada. O que eu havia feito de minha vida durante todos esses anos? Será que eu havia me perdido entre devaneios tolos, entre tribulações mundanas e impróprias? Implorei a ajuda de Zeus, gritei por meu mestre, mas não consegui escutar nenhuma outra voz que não fosse a minha própria voz. “Não me abandoneis, Zeus, eu vos imploro, não me abandoneis!”. Como uma chuva tempestiva e abrupta, lágrimas começaram a rolar sobre minhas faces. Era impressionante, mas eu não conseguia me controlar. O mundo não tinha mais forma, cor, odores, o que era próximo e reconhecível havia adquirido parentesco com o mistério e a desolação.

Senti-me só, desamparado e semimorto. Mas os deuses não estão aptos a abandonar os homens em suas misérias e ignorância. Fulminados por uma luz maior, meus olhos arderam ante a figura esguia de Ísis, a deusa mãe, com seus olhos ternos e seus seios sempre fartos de vida e luz. “Não vos preocupeis, ó filho amado, pois é vos dado a vida e a luz. Descobri, pois, onde o amor!”. A deusa trazia em suas mãos os restos de seu amado Osíris. “Eis que Osíris perdeu-se no mundo, tragado por Seth, e a mim resta a tarefa de reconduzi-lo ao UM. Tornai-vos, vós também, um Osíris, para que eu possa vos resgatar do mundo e beijar-vos como uma noiva beija seu amado noivo!”.

Apolo, em todo o seu esplendor e beleza, segurava as mãos de Seth, auxiliado por Harmachis, conduzindo-o ao Hades que era, em síntese, o próprio. Essa algaravia de deuses causou-me náuseas e vomitei e chorei e perdi minha consciência e desmaiei.

Escancarei as janelas de meu apartamento e, do parapeito da varanda, contemplei os carros que iam e viam, as luzes atônitas da cidade, os transeuntes sem identidade, o asfalto negro e a brancura fria da Lua. Minha esposa havia saído com nossos filhos e isso me proporcionava certa paz. Essa predisposição ao silêncio sublevava meu pensamento a paragens ígneas, fogo essencial. Husserl afirmava que nas profundidades residem as obscuridades e, nas obscuridades, os problemas realmente válidos.

Só encarando essa profundidade estaremos aptos a responder a tudo o que nos inquieta, tudo o que nos conduz a um desvelar incessante desta imanência eterna. Saturado dos fatos ontológicos, apofânticos e metafísicos desta realidade que outrora era irreal, saturado por compreendê-la profundamente, percebi que aí estava a clareira e que o discurso do mundo era o discurso do ser que fala de si para si e que nós, os homens, recebemos o presente de ser a clareira por onde o discurso é dado.

Por isso, só quando estamos em nosso presente é que podemos percebê-lo. Heidegger assinalou que o ser é recolhimento. Do Invisível Ilimitado ao manifestado, operação sublime do Logos. Recolher-se, para o homem, é lembrar-se, articular-se de forma infindável na atenção de seu presente, do ser que é para si. Eis o ofício dos filósofos. Distante da aporia indicada por Platão, minha mente ansiava ardentemente o retorno, pois lembrar-se é retornar.

Pensei em Schopenhauer, Klages e Hartmann, em suas filosofias e vidas, e meu coração já não se sentia mais pesado. Lembrei-me do meu grande mestre e de suas palavras: “Lembre-se!”. Um passado que se tornou presente, uma dádiva para a vida. Continuo a contemplar a rua e suas luzes esparsas e sei que no Um há a vida e que no Dez há a morte que conduz à vida que sempre está no presente e não em outro mundo. Para mim, por fim, só resta uma imensa reverência. Agradeço aos gregos por terem nos dado a Filosofia e nos ensinado a essência da vida que é, de fato, a beleza.



                                                     2003 Meta Christos



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quinta-feira, 17 de junho de 2010

O filósofo de Königsberg

A pequena cidade prussiana de Königsberg estava tomada por uma fina chuva que enregelava os ossos, tornando os movimentos mais simples numa tortura para o corpo e a mente. Imannuel Kant, homem espiritualizado, de estatura mediana, ombros caídos, queixo tímido e olhos vivazes, tentava chegar a sua casa o mais rápido possível. Sua imaginação ainda estava tomada pela música celestial que acabara de ouvir na principal sala de concertos da cidade. O quarteto que havia executado aquelas belas obras, belas ao extremo de podermos lhes dar uma realidade matemática, vinha de Viena e estava apenas de passagem pela pacata Königsberg, o que dava ao evento um caráter mais que especial.

O filósofo estava completamente tomado pelas melodias angelicais, etéreas e flutuantes de uma música que lhe sublevava o espírito e aumentava seu poder de raciocínio sobre o mundo. É bem verdade que o efeito devastador que a obra Tratado da Natureza Humana de David Hume exercia sobre esse homem tão correto era mais do que mera atenção acadêmica. Ele percebia que havia ali um resquício subterrâneo de uma verdade que precisava ser amplificada, melhorada e compreendida em seu fundamento último. A música que ressoava em seus ouvidos fazia com que as ruas da cidade, com suas pitorescas casas, não exercessem nenhuma influência sobre sua mente. Intrigado com a capacidade humana de conhecer, nosso filósofo queria desvelar o fundamento primordial de tal tarefa. Havia algo, entretanto, que lhe escapava, que fugia entre suas mãos assim que seu pensamento deitava-se sobre esse mesmo fundamento. Apenas a expressão a priori parecia retinir, zumbir com extremo poder em suas idéias.

Seus questionamentos estavam embasados em duas questões de suma importância para o conhecimento humano: como são possíveis a matemática pura e a ciência pura da natureza? Havia uma clara indicação em seu pensamento de que seria necessário ir além, fazer uma revolução digna da elaborada por Copérnico. Tal fundamento, pensava o filósofo, só poderia estar desde já inserido numa razão e essa, de fato, só poderia ser pura em sua constituição. Então, pensou, talvez deva ser elaborada uma crítica fundamental do conhecimento humano a partir da própria razão em seu aspecto puro. Era isso, exclamou de si para si enquanto a música celestial ia desaparecendo de seu espaço mental, deve-se elaborar uma crítica que investigue a fundo a razão enquanto estado puro. Uma crítica da razão pura, pensou sobressaltado. Eureka!, falou para as casas. Sua felicidade era enorme. Que prazer descobrir uma coisa dessas. Isso será útil para todos, confabulou no mais alto de sua humildade.

- Bem – falou para si enquanto caminhava para casa – amanhã terei que dar aulas apenas pela manhã. Assim, quando sair da Universidade, posso ir direto para a biblioteca e resolver certas questões de método, elaborar um projeto de pesquisa seguro, traçar as diretrizes de meu pensamento, compor um organum inicial, verificar certas medidas de universalidade e necessidade, delimitar alguns capítulos e iniciar minha Crítica da Razão Pura.

Sua felicidade era contagiante. Sendo sempre muito tímido e reservado, o filósofo pensou na solidão intransponível entre seus pensamentos e a impossibilidade de comunicá-los aos seus concidadãos. Sua esposa, uma mulher séria e sempre centrada nas atividades domésticas, jamais teria a capacidade de compartilhar com ele esse momento único de descoberta, de uma felicidade sublime, magistral. Talvez devesse ser assim mesmo, ele pensou enquanto adentrava o aconchego denso e mórbido de seu lar.

Metodicamente retirou suas botas, depositou-as perto da lareira, seguiu até seu quarto, trocou de roupas, depositou a peruca numa enorme escrivaninha que tomava quase todo o recinto e lavou as mãos num pequeno jarro que continha água limpa. Foi até o quarto contíguo e pegou alguns livros, folheando-os com paciência e prazer. Sua esposa surgiu na porta vinda da cozinha onde acabara de preparar uma sopa de legumes para o jantar.

- A sopa está na mesa.

O filósofo sorriu para ser-lhe agradável. Não houve resposta. Levantou-se, depositou os livros numa pequena mesa de estudos com certo pesar e seguiu para o jantar.

Na mesa, envolvida pelo vapor denso da sopa, sua esposa enumerou várias coisas que precisavam ser feitas na casa.

- Você tem que consertar o portão da cerca dos porcos, encher o reservatório de água, comprar mais lenha, providenciar nossa cerveja, falar com o senhor Blaten sobre o atraso do aluguel e comprar algumas cebolas no mercado para o cozido que farei amanhã. Você bem sabe que papai virá jantar conosco, não?

- Sim, querida, eu sei – sua voz indicava um desespero lacônico. Por que não morrer, desaparecer ou mudar-se de vez? Por que não ir morar na Itália? Terra doce e adorável com suas montanhas belas e suas praias magníficas. Mas, sem jamais ter saído de sua terra natal, certo sentimento fastidioso de preguiça o invadia, deixando-o indisposto às viagens.

- Não se esqueça – prosseguiu sua esposa – que temos que providenciar meu vestido para o casamento dos Blütenzwig no próximo mês. Você prometeu que iria economizar bastante para comprá-lo, não foi? Você sabe muito bem como Alice é com essas coisas. Tudo deve estar impecável. E eu, você bem sabe, não gosto de estar deslocada, como se fosse uma espanhola num vestido de laços.

A voz da mulher deixava nosso filósofo cada vez mais desesperado. Meu Deus, ele pensou, como irei fazer tudo isso e ainda encontrar tempo para meus estudos, para minhas pesquisas? Como poderei escrever minha obra com tantos afazeres?

- Imannuel – berrou sua esposa – Imannuel! Acorde, homem.

Ele quase cai da cadeira. A sopa estava gostosa e isso era, de certa forma, um alento. Assim, ao menos, ele meditou, estou a salvo desse frio medonho. Sua esposa continuou enumerando diversas coisas que deveriam ser aprontadas durante o mês que despontava ainda em flor. O desespero de Kant só não era maior do que a quantidade quase absurda de tarefas que ele deveria executar de acordo com a vontade de sua esposa.

“Será - ele pensou no seu mais íntimo - será que realmente vale a pena essa vida? Não seria melhor abandonar tudo, partir para longe e viver como um filósofo?”. Mas nós somos presas de nossas próprias armadilhas. A sua compreensão de dever moral era tão gritantemente correta que seria realmente impossível uma ação mais radical. As impensáveis tarefas domésticas invadiam sua perspectiva de futuro. Festas, vestidos, cercas, cerveja, lenha, frio, salário, aulas, alunos, métodos, vizinhos, parentes, água, limpeza, tudo surgia como um mosaico diabólico ante suas esperanças esmagadas por tantas coisas a serem executadas. E sua obra? Onde ele iria encontrar tempo para elaborar sua obra-prima que já parecia nascitura? Seria possível conciliar duas coisas tão inconciliáveis? Que responsabilidade valeria tanto?

- Não se esqueça, Imannuel, que temos que comprar mantimentos na cidade para a semana que vem. E suas meias – ela inquiriu com uma voz doce, quase campestre – você não acha que eu deveria costurar um par novo para você?

Seu cérebro parou ante essas palavras. Meias? O que seria isso? E por que eu precisaria delas novas? Seus pensamentos estavam centrados em mundos superiores. Meias, sapatos, sopas ou caldeirões não habitavam seu mundo mais próximo.

- Sim, querida – ele respondeu – seria muito bom se você costurasse um novo par para mim.

Assim seguiu-se a vida do nosso adorável filósofo de Königsberg: atarefado com coisas impensáveis, sempre disposto a ajudar e eternamente incapaz de se libertar. Suas meias, contudo, assim como sua pretensa e monumental obra-prima, jamais saíram da pura especulação, jamais deixaram de habitar apenas o mundo das ideias. A humanidade, infelizmente, não pode conhecer a genial crítica que aquele senhor pensou em elaborar sobre nosso conhecimento e sua Crítica da Razão Pura morreu antes mesmo de nascer. E, o que era ainda mais triste, nosso filósofo foi para o caixão sem jamais saber o que significava um par de meias.



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sexta-feira, 11 de junho de 2010

Os Lusíadas

Análise historiográfica e filosófica da questão do tempo à luz do poema de Camões.
O link para download:
http://rapidshare.com/files/397844004/Os_Lus__adas.pdf.html