quinta-feira, 17 de junho de 2010

O filósofo de Königsberg

A pequena cidade prussiana de Königsberg estava tomada por uma fina chuva que enregelava os ossos, tornando os movimentos mais simples numa tortura para o corpo e a mente. Imannuel Kant, homem espiritualizado, de estatura mediana, ombros caídos, queixo tímido e olhos vivazes, tentava chegar a sua casa o mais rápido possível. Sua imaginação ainda estava tomada pela música celestial que acabara de ouvir na principal sala de concertos da cidade. O quarteto que havia executado aquelas belas obras, belas ao extremo de podermos lhes dar uma realidade matemática, vinha de Viena e estava apenas de passagem pela pacata Königsberg, o que dava ao evento um caráter mais que especial.

O filósofo estava completamente tomado pelas melodias angelicais, etéreas e flutuantes de uma música que lhe sublevava o espírito e aumentava seu poder de raciocínio sobre o mundo. É bem verdade que o efeito devastador que a obra Tratado da Natureza Humana de David Hume exercia sobre esse homem tão correto era mais do que mera atenção acadêmica. Ele percebia que havia ali um resquício subterrâneo de uma verdade que precisava ser amplificada, melhorada e compreendida em seu fundamento último. A música que ressoava em seus ouvidos fazia com que as ruas da cidade, com suas pitorescas casas, não exercessem nenhuma influência sobre sua mente. Intrigado com a capacidade humana de conhecer, nosso filósofo queria desvelar o fundamento primordial de tal tarefa. Havia algo, entretanto, que lhe escapava, que fugia entre suas mãos assim que seu pensamento deitava-se sobre esse mesmo fundamento. Apenas a expressão a priori parecia retinir, zumbir com extremo poder em suas idéias.

Seus questionamentos estavam embasados em duas questões de suma importância para o conhecimento humano: como são possíveis a matemática pura e a ciência pura da natureza? Havia uma clara indicação em seu pensamento de que seria necessário ir além, fazer uma revolução digna da elaborada por Copérnico. Tal fundamento, pensava o filósofo, só poderia estar desde já inserido numa razão e essa, de fato, só poderia ser pura em sua constituição. Então, pensou, talvez deva ser elaborada uma crítica fundamental do conhecimento humano a partir da própria razão em seu aspecto puro. Era isso, exclamou de si para si enquanto a música celestial ia desaparecendo de seu espaço mental, deve-se elaborar uma crítica que investigue a fundo a razão enquanto estado puro. Uma crítica da razão pura, pensou sobressaltado. Eureka!, falou para as casas. Sua felicidade era enorme. Que prazer descobrir uma coisa dessas. Isso será útil para todos, confabulou no mais alto de sua humildade.

- Bem – falou para si enquanto caminhava para casa – amanhã terei que dar aulas apenas pela manhã. Assim, quando sair da Universidade, posso ir direto para a biblioteca e resolver certas questões de método, elaborar um projeto de pesquisa seguro, traçar as diretrizes de meu pensamento, compor um organum inicial, verificar certas medidas de universalidade e necessidade, delimitar alguns capítulos e iniciar minha Crítica da Razão Pura.

Sua felicidade era contagiante. Sendo sempre muito tímido e reservado, o filósofo pensou na solidão intransponível entre seus pensamentos e a impossibilidade de comunicá-los aos seus concidadãos. Sua esposa, uma mulher séria e sempre centrada nas atividades domésticas, jamais teria a capacidade de compartilhar com ele esse momento único de descoberta, de uma felicidade sublime, magistral. Talvez devesse ser assim mesmo, ele pensou enquanto adentrava o aconchego denso e mórbido de seu lar.

Metodicamente retirou suas botas, depositou-as perto da lareira, seguiu até seu quarto, trocou de roupas, depositou a peruca numa enorme escrivaninha que tomava quase todo o recinto e lavou as mãos num pequeno jarro que continha água limpa. Foi até o quarto contíguo e pegou alguns livros, folheando-os com paciência e prazer. Sua esposa surgiu na porta vinda da cozinha onde acabara de preparar uma sopa de legumes para o jantar.

- A sopa está na mesa.

O filósofo sorriu para ser-lhe agradável. Não houve resposta. Levantou-se, depositou os livros numa pequena mesa de estudos com certo pesar e seguiu para o jantar.

Na mesa, envolvida pelo vapor denso da sopa, sua esposa enumerou várias coisas que precisavam ser feitas na casa.

- Você tem que consertar o portão da cerca dos porcos, encher o reservatório de água, comprar mais lenha, providenciar nossa cerveja, falar com o senhor Blaten sobre o atraso do aluguel e comprar algumas cebolas no mercado para o cozido que farei amanhã. Você bem sabe que papai virá jantar conosco, não?

- Sim, querida, eu sei – sua voz indicava um desespero lacônico. Por que não morrer, desaparecer ou mudar-se de vez? Por que não ir morar na Itália? Terra doce e adorável com suas montanhas belas e suas praias magníficas. Mas, sem jamais ter saído de sua terra natal, certo sentimento fastidioso de preguiça o invadia, deixando-o indisposto às viagens.

- Não se esqueça – prosseguiu sua esposa – que temos que providenciar meu vestido para o casamento dos Blütenzwig no próximo mês. Você prometeu que iria economizar bastante para comprá-lo, não foi? Você sabe muito bem como Alice é com essas coisas. Tudo deve estar impecável. E eu, você bem sabe, não gosto de estar deslocada, como se fosse uma espanhola num vestido de laços.

A voz da mulher deixava nosso filósofo cada vez mais desesperado. Meu Deus, ele pensou, como irei fazer tudo isso e ainda encontrar tempo para meus estudos, para minhas pesquisas? Como poderei escrever minha obra com tantos afazeres?

- Imannuel – berrou sua esposa – Imannuel! Acorde, homem.

Ele quase cai da cadeira. A sopa estava gostosa e isso era, de certa forma, um alento. Assim, ao menos, ele meditou, estou a salvo desse frio medonho. Sua esposa continuou enumerando diversas coisas que deveriam ser aprontadas durante o mês que despontava ainda em flor. O desespero de Kant só não era maior do que a quantidade quase absurda de tarefas que ele deveria executar de acordo com a vontade de sua esposa.

“Será - ele pensou no seu mais íntimo - será que realmente vale a pena essa vida? Não seria melhor abandonar tudo, partir para longe e viver como um filósofo?”. Mas nós somos presas de nossas próprias armadilhas. A sua compreensão de dever moral era tão gritantemente correta que seria realmente impossível uma ação mais radical. As impensáveis tarefas domésticas invadiam sua perspectiva de futuro. Festas, vestidos, cercas, cerveja, lenha, frio, salário, aulas, alunos, métodos, vizinhos, parentes, água, limpeza, tudo surgia como um mosaico diabólico ante suas esperanças esmagadas por tantas coisas a serem executadas. E sua obra? Onde ele iria encontrar tempo para elaborar sua obra-prima que já parecia nascitura? Seria possível conciliar duas coisas tão inconciliáveis? Que responsabilidade valeria tanto?

- Não se esqueça, Imannuel, que temos que comprar mantimentos na cidade para a semana que vem. E suas meias – ela inquiriu com uma voz doce, quase campestre – você não acha que eu deveria costurar um par novo para você?

Seu cérebro parou ante essas palavras. Meias? O que seria isso? E por que eu precisaria delas novas? Seus pensamentos estavam centrados em mundos superiores. Meias, sapatos, sopas ou caldeirões não habitavam seu mundo mais próximo.

- Sim, querida – ele respondeu – seria muito bom se você costurasse um novo par para mim.

Assim seguiu-se a vida do nosso adorável filósofo de Königsberg: atarefado com coisas impensáveis, sempre disposto a ajudar e eternamente incapaz de se libertar. Suas meias, contudo, assim como sua pretensa e monumental obra-prima, jamais saíram da pura especulação, jamais deixaram de habitar apenas o mundo das ideias. A humanidade, infelizmente, não pode conhecer a genial crítica que aquele senhor pensou em elaborar sobre nosso conhecimento e sua Crítica da Razão Pura morreu antes mesmo de nascer. E, o que era ainda mais triste, nosso filósofo foi para o caixão sem jamais saber o que significava um par de meias.



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