domingo, 8 de agosto de 2010

O discípulo do Marquês de Sade

A consciência é um círculo que sempre se expande.

                                                        LaRochette


O conde Yves Devaubann era um homem excêntrico, de estatura volumosa, ombros largos, enormes bigodes e uma cabeça bem redonda e segura sobre seu imenso pescoço. Herdeiro de uma fortuna considerável, ele passava a maioria do tempo de sua vida diletante entre os saraus da corte, os recitais de piano, os banhos turcos e o deleite paradisíaco que sua imensa propriedade nas imediações fronteiriças de Paris permitia ao mais simples dos mortais. Homem de formação duvidosa – seu pai antes de enriquecer com o comércio de tecidos era um mero vendedor de especiarias que vinham de todas as partes da Europa (tecidos, jóias, pimenta, quadros, frutas e corantes) e sua mãe vivia ocupada com as tarefas domésticas – o conde Yves Devaubann logo cedo demonstrou sua tendência natural ao sarcasmo, à pilhéria e à degradação alheia.

Seus amigos de infância, ao contrário, tiveram melhor sorte na vida e enriqueceram ainda jovens. O Capitão Sorelle e o vendedor de quadros famosos LaRochette eram exemplos vivos desta assertiva. Iniciaram a vida nos negócios logo cedo e, apesar de também pertencerem a classes sociais inferiores, trabalharam arduamente para conseguirem seus objetivos. Apesar de seus amigos alcançarem o sucesso dentro deste universo, eles jamais abandonaram a amizade de Devaubann, muito pelo contrário, o amigo menos afortunado era o mentor deles, uma espécie de gênio empobrecido, mas que sempre merecia atenção por ter algo profundo a dizer.

Devaubann não era um homem letrado, longe disso, mas sua inquietação e ambição naturais eram tão fortes em sua vida que ele passou naturalmente a questionar tudo o que o cercava e decidiu, então, que poderia compreender o mundo, os homens e a si mesmo sem jamais ter lido um único livro. Sua filosofia caótica continha certo charme e isso, de fato, impressionava seus amigos. Foi desta forma que Devaubann, através de Sorelle e LaRochette, adentrou a vida na corte, conheceu mulheres excepcionais e despudoradas, penetrou num universo particular, restrito a um seleto número de seres privilegiados. Mas o pobre Devaubann não tinha posses, não tinha berço e todos sabiam que ele era sustentado por seus amigos.

O destino, entretanto, havia reservado algo muito especial para Devaubann: um rico comerciante alemão, Habermmas Schiller, havia falecido e por nunca ter se preocupado com coisa alguma na vida a não ser com o dinheiro e sua fortuna, não havia deixado ninguém sobre a terra capaz de herdar seu imenso patrimônio. Um advogado extremamente correto – e isso é uma raridade, o que prova que o destino estava realmente trabalhando a favor de Devaubann – descobriu que o rico Schiller tinha laços obscuros de parentesco com a família Devaubann e que toda aquela fortuna deveria ser transferida para a França – acreditem ou não – e que, devido a termos ainda mais obscuros de um contrato inimaginável, Yves Devaubann, filho único de Marcel Yves Devaubann, seria o herdeiro universal de tamanha fortuna.

Yves logo se dirigiu para a região da Bavária com seus fiéis amigos onde passaram noites inteiras comemorando tamanha felicidade. Foi numa dessas noites de orgias, bebedeiras e esquecimento que Yves teve acesso a um pequeno livrinho. Talvez mãos mágicas houvessem colocado-o em seu colo, talvez uma força fantástica e desconhecida tenha operado tamanho milagre. Eis que um texto inteiro do Marquês de Sade havia sido deposto no colo de Yves Devaubann. O pobre diabo embriagado começou a folhear aquelas folhas com uma ânsia tresloucada, sorvendo cada linha como se fosse uma fonte imperecível de energia e luz. No outro dia ele já havia decidido: não havia Deus, ao homem só deveria interessar o prazer da carne e, para dar ensejo a tais pensamentos e saciar seus desejos mais fundos, iria comprar um imenso castelo nas regiões dos Cárpatos onde ele e seus amigos poderiam por em prática seus anseios mais insanos.

Os três amigos adquiriram a citada propriedade, contrataram criados fiéis e escolhidos a dedo, arregimentaram as mulheres mais pervertidas da região para ajudá-los em suas empreitadas diabólicas, compraram infindas quantidades de mantimento e se instalaram em definitivo no Castelo. Sorelle, devido aos seus conhecimentos militares, ficou encarregado de providenciar os seqüestros dos sete rapazes e das sete moças, todos virgens e de famílias abastadas e que serviriam de repasto aos apetites desenfreados dos três amigos. LaRochette, homem de formação culta, letrado, capaz de entrar e sair nos lugares mais refinados, respeitado pela alta sociedade, ficou encarregado de providenciar os músicos, os livros, as bebidas, as comidas e outras coisas que poderiam saciar seus desejos mais refinados. Foi no ano de 1830 que se deu início ao relato que se segue. O pai de Yves havia falecido e isso aumentava ainda mais a sua riqueza e seu poder.

Era uma tarde tenebrosa de outono quando os três amigos adentraram um dos cômodos principais do Castelo onde os quatorzes jovens estavam. Todos estavam nus, amarrados às costas e atrelados ao chão por correntes poderosas. Seus órgãos genitais estavam enfeitados com pinturas campestres e seus olhos sofreram uma maquilagem própria dos egípcios. LaRochette aproximou-se de uma pequena menina loira que estava chorando. Esbofeteou-a com violência e avisou que era proibido chorar naquele recinto e que qualquer digressão a tal ordem seria punida com a morte. Subitamente desceu sua língua voluptuosa até as genitálias da criança e começou uma sucção desenfreada.

Sorelle havia amarrado dois jovens e uma menina aos seus pés e chicoteava-os, intercalando tal violência com afagos e carinhos em suas partes mais íntimas. Devaubann estava penetrando um menino de apenas treze anos sobre um imenso divã que estava disposto ao lado da imensa janela principal de onde podíamos divisar a bela paisagem campestre que se estendia até o horizonte. Várias mulheres percorriam o recinto derramando champanhe sobre os amigos, afagando-os, dizendo obscenidades, masturbando-se com fúria e sofreguidão. LaRochette, tomado de êxtase, recitou de um só fôlego: “É na verdade mais que humano prazer, sobre as montanhas, ao relento da noite repousando, com a mente abranger em puro êxtase toda a terra e os céus, enfatuando-se até julgar-se Deus”. Os amigos aplaudiram-no e o concerto de gemidos, impropérios, imprecações e gritos continuou a noite toda.

Durante 120 dias aquela sinfonia da luxúria continuou com as harmonias mais grotescas; não sendo a fonte das fontes, o apetite dos três amigos secou e, atônitos, procuraram como renovar seus desejos. Consultaram livros, folhearam o livrinho e pareciam estagnados em suas próprias mentes. Devaubann meditou a manhã inteira: recusou-se se banquetear com seus amigos, dirigindo-se à torre mais alta do castelo para refletir. Encharcado de tudo, seu cérebro parecia uma imensa nuvem branca, flutuando de um lado para outro. Ele contemplou o céu e num lampejo de última loucura teve uma idéia que julgou brilhante. Desceu correndo as escadas e surgiu aos berros num dos cômodos ricamente decorado onde seus amigos saciavam-se com os jovens. “Tive uma iluminação. Sei como realizaremos o grand finale”. Seus amigos pararam suas atividades, entreolharam-se curiosos e questionaram: “Que idéia magnífica foi essa, caro amigo?”, perguntou Sorelle enquanto beijava os seios rígidos de uma jovenzinha de olhos verdes e lábios vermelhos. Devaubann precipitou-se ao cômodo contíguo e convocou seus amigos para uma reunião.

No último dia de Sodoma, os amigos deram ensejo ao grand finale mentalizado por Devaubann. No imenso pátio do Castelo eles erigiram quatorzes cruzes enormes, colocaram um imenso barril de vinho à frente das cruzes e postaram as mulheres, todas nuas e pintadas, ao redor dos objetos de tortura. Um a um, cada jovem foi crucificado, tendo seus órgãos genitais arrancados e fritados com azeite num enorme fogo. Os amigos banquetearam-se com os órgãos dos jovens, encharcaram-se de vinho e violentaram os cadáveres dos meninos e das meninas. As mulheres banhavam seus corpos cansados com mais vinho e, a intervalos regulares, lambiam seus membros eretos e jamais saciados. O céu estava negro, nuvens pesadas caminhavam de cá para lá adornando um crepúsculo vermelho como o sangue.



   For man will hearken to his glozing lies,


   And easily transgress the sole command.

                                                   Milton

Um comentário:

  1. Esse conto, se nao me engano, foi publicado em um dos seus livros..Conto intenso,insano e profundamente hedonista,com um grand finale creativo, macabro e extremamente cruel!Nem o proprio Marques de Sade teria ido tao longe!Brilhante.

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