segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Ars Diluvian

          O dilúvio havia terminado. Noé, a estibordo da imensa arca que ele havia construído com suas próprias mãos, divisou o horizonte e a terra encharcada. Nenhum sinal de vida, apenas terra e lama. Nem uma árvore, ele pensou. Movido por sua impetuosidade natural, Noé convocou a todos e, dando ordens com sua voz tonitruante, o processo de repovoamento da terra foi iniciado. Apesar das dimensões reduzidas da arca, centenas, milhares, milhões de animais foram surgindo do interior da embarcação e descendo até à terra firme. Era incrível: animais infinitos desciam pela pequena rampa de madeira que servia de acesso à nova morada e, ainda estarrecidos com a liberdade que haviam herdado, moviam-se vagarosamente de um lado ao outro, estonteados com a imensidão celestial daquela nova paisagem. Camelos, leões, crocodilos, zebras, tigres, elefantes, aves, répteis, seres esquálidos, seres inominados, da terra, do ar, da água e do fogo, todos celebravam a nova existência. Cam, pai de Canaã e filho de Noé, aproximou-se do homem de longos cabelos brancos, segurou-lhe o ombro enquanto contemplavam o movimento dos animais e segredou-lhe: “Deus não nos abandonou, pai”. Seu tom indicava alívio e, ao mesmo tempo, um espírito torturado pela dúvida, por uma incerteza gigantesca. “Nunca duvidei disso, meu filho. Nunca”, as palavras do ancião tinham a coloração de mil verões e a harmonia infinita da felicidade reservada aos fortes. “Nunca”, repetiu solenemente. Em pouco tempo haviam montado acampamento sobre as montanhas do Ararat e, aguardando as águas que iam diminuindo pouco a pouco, elevaram um altar ao Senhor, tomaram todos os animais puros e que foram oferecidos em holocausto sobre o altar. O Deus de Noé celebrou consigo uma aliança e, movido por tal certeza, o patriarca erguia a nova árvore da vida. Todos, sem exceção, trabalhavam para manter os proventos necessários: a terra era fértil e nada lhes faltava. Certa noite, quando as estrelas brilhavam com intensidade e o céu transpirava com força, Noé bebeu vinho, embriagou-se e apareceu nu no meio de sua tenda. Cam ficou assombrado com a nudez de seu pai e, sem compreender o que aquilo significava, correu até seus dois irmãos e contou o que havia visto. Sem e Jefet tomaram de uma imensa capa de pele de carneiro e cobriram a nudez de seu pai. No outro dia, quando um sol virulento já assinalava que a luz inexorável da vida sobrepunha-se ao dilúvio, Noé despertou de sua embriaguez e soube o que lhe tinha feito o seu filho mais novo. “Maldito seja Canaã”, disse ele e, embevecido em sua própria ira, acrescentou: “Que ele seja o ultimo dos escravos de seus irmãos!”. Da água para a terra a vida continuava e reclamava, como sempre, os seus tributos. Desde esse dia assim vive a humanidade: dominada pela polaridade e, aflita, não reconhece quem é seu senhor. Feliz o homem que reconhece a nudez de seu pai e a cobre. Maldito aquele que não consegue ler os signos do mundo.

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