segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A Páscoa de Átis


Escuridão. Podia-se perceber a respiração ofegante de algumas pessoas, o suor escorrendo lentamente pela fronte ou o coração que parecia estourar dentro do peito e o choro ritmado de alguns devotos. Escuridão, uma escuridão completa. Uma padiola, no centro da sala, conservava a imagem do deus amado. Se a escuridão era completa, como se poderia saber, seja de que maneira fosse, que aquela era a imagem efetiva do grande deus? O odor imperturbável de óleo e plantas frescas dominava o ar ainda mais restrito, germinado em sua clausura imposta pelo volume gigantesco da escuridão. Artemiodoro, um rapaz de vinte e dois anos, cabelos longos, pele alva e as faces túrgidas como a mais pura neve, sentia um intenso desejo de chorar. Seria medo ou devoção o que compunha tal anseio? Há um limite bem posto entre o que é o medo e a devoção? Sua coragem era realmente coragem ou mera curiosidade pelo desconhecido?

O forte odor de sangue construía cadeias concêntricas de realizações por todo o ar até atingir seu objetivo: a mente de todos. Erigindo uma estranheza ainda mais inquietante, o sabor salitre das lágrimas reconduzia o devoto a um mundo onde o que pode ser reconhecido, amado ou odiado, já não tinha mais lugar. Artemiodoro pensou em sua amada Célere, pensou em seus cabelos negros, nos seus seios fartos e na beleza de sua barriga tomada pela mão do próprio deus em sua composição mais grata da primavera. Onde iriam habitar, que rios iriam ser visitados, que pessoas iriam compartilhar de suas ceias? Apenas na concentração, na criação vigorosa de sua mente era que ele conseguia permanecer calmo.

- Não temam, ó devotos do grande e amado Átis. Assim como o amor imorredouro da nossa deusa mãe, iremos reviver nosso amado deus. Pois do sangue que brota de nosso amor, eis que a terra torna-se mais fecunda e propícia para que ele, em sua esplendorosa veste de flores, renasça e nos dê de sua sublime seiva.

A voz do arquigalo soava com tanta firmeza, destemida e envolvente, que se poderia sentir o elevar-se do deus com seu rosto de pureza e gratidão. Artemiodoro foi violentamente tomado por um sentimento incomum de êxtase, uma certeza inabalável de que ele estava realmente fazendo a coisa certa. Como Célere deveria sentir-se orgulhosa de seu trabalho. Que prazer tão sorrateiro esse orgulho que nos invade sem aviso e que se aloja silenciosamente no mais profundo de nossas ações, reclamando suas moedas, regurgitando de prazer em fontes tão puras! Porém, e sabemos como nossos pensamentos são presas constantes do passado, o jovem Artemiodoro sentiu-se fatigado e lembrou-se de como havia chegado até ali.

Uma turba ensandecida de jovens tentava desesperadamente derrubar um enorme pinheiro que tomava quase toda uma clareira enorme no centro da floresta. Árvores seculares estagnavam o tempo, enquanto os urros empedernidos dos jovens cruzavam ferozmente o silêncio crepuscular da floresta. Timbales desafinados tentavam acompanhar flautas embevecidas numa tentativa canhestra de adorar o grande deus. Quando, por fim, a árvore foi arrancada de seu silêncio e vida, os jovens celebraram e arrastaram-na por toda a vila entremeando a robusta algaravia de seus desejos com a música desconexa e furiosa que alguns jovens mais embriagados tentavam compor.

- Vamos – alguém gritou – Adornem os ramos.

A imagem do deus foi colocada no pinheiro que foi prontamente apregoado no centro da vila. O templo do deus permanecia mudo ante a desordem e algazarra frenética de seus devotos: entre o silêncio e o barulho reside a mais perfeita fronteira já criada pela Natureza. Os sacerdotes dos Mistérios elevaram suas vozes de trovão e terror para todos. A cerimônia prosseguiu por dois dias. A loucura extática, o êxtase adquirido, a circularidade constante do pensamento e a fadiga do corpo compunham um quadro único: quem poderia prever qualquer ação, qualquer ato? Há razão onde os sentimentos são turvos e desconexos? Será a razão uma mera intérprete daquilo que sentimos? Artemiodoro estava tomado de amor pelo deus. Folhas de diversas árvores adornavam seu corpo e uma bela fita amarela cobria sua cabeça de um lado a outro. Sua felicidade era enorme.

- A dádiva e a alegria são nossas! - ele gritava em seu assomo incontido de êxtase.

Sobre um estrado de madeira, erguido à esquerda da entrada do templo, um oficial do deus, o arquigalo, atingia o clímax do ritual quando, de um só golpe, arrancava todo o seu órgão sexual, encharcando-se completamente de sangue e tomado por um frenesi incontinenti, superlativo e assombroso. O homem sempre busca superar a Natureza, mas cai ante a diversidade insuperável de suas belezas e mistérios. A dor, que em qualquer outro momento seria um martírio impossível e atroz, aqui era um presente, uma dádiva meditada e aguardada no período de um ano inteiro. Os jovens sentiam-se assombrados com o sangue. Outros, mais exaltados, empunhavam facas velozes e decepavam seus membros em honra ao deus. Artemiodoro, um grande devoto, decidiu emascular-se ante a divindade e, ele também, arrancou a fonte primordial de sua masculinidade. Extasiado, embriagado por sua devoção e felicidade, não sentiu nenhuma dor ou mesmo foi tomado de pânico: a indescritível alegria de ser um com o deus era enorme.

- A ti! – ele gritou.

A procissão não esmorecia: músicas, cantos, choros: homens, mulheres, crianças e sacerdotes compunham o quadro magnífico da humanidade.

Escuridão. Choros. Sangue. Lágrimas. Sal. Óleos. A escuridão ainda dominava o interior da sala sagrada do templo. Artemiodoro pensava em Célere e tentava, a todo custo, lembrar-se do odor volumoso do sangue. Assim, não mais que de repente, irrompe sala adentro um sacerdote ungido de óleos e folhas sagradas, gritando a plenos pulmões e trazendo em uma das mãos uma tocha que lançava luz por todo o recinto.

- O deus está salvo – ele gritava – O deus está salvo! Alegrai-vos.

Todos sentiam a tristeza dissipar-se de seus corações, a luz caudalosa que invadia aquela escuridão insuportável assomava-se ainda mais a tal sentimento. Mas será que estamos sempre dispostos a reconhecer os atos de nossos arrebatamentos sem culpas? Artemiodoro pensou em Célere. As portas do templo abriram-se e todos saíram numa correria libertadora. A luz trouxe a verdade que ele tanto tentava esquecer. Pensou em Célere e soube que agora não poderia mais sonhar com ela, com seus cabelos, seu corpo, sua voz e seus lábios. Como um homem poderia fazer uma mulher feliz sem dar-lhe da seiva mais preciosa? Como dar esperanças a uma mulher quando não se pode dar-lhe filhos? Artemiodoro colocou as mãos entre o rosto e chorou.



                          “Não é mortal, nem deus: é um herói

                                      Do mito de Cibele e Átis



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