sexta-feira, 16 de julho de 2010

A feira

    I




Do contato inextinguível, ou quase, de minhas andanças pelo Alto Sertão de Pernambuco, da Bahia e do Ceará, retirei o sumo próprio deste conto. Do contato com curandeiros e com a Amanita Muscaria, um alucinógeno que estruturou uma forma mais concisa ao meu entendimento, vislumbrei a materialidade existente na feira como ao movimento que buscava compreender.

Tudo isto colocou minha alma numa situação diletante, quase como uma estagnação frente às teorias digeridas no seio da solidão que se fortificava, e como a mesma coisa. Eu abandonara o criticismo pouco próprio de Kant; o neo-racionalismo de Carnap; a antropologia estatal de Lowie e Lévi-Strauss; a poesia hermética e transversa de Mallarmé e Kazantzákis; os silogismos inválidos de Cioran; o etnocentrismo exacerbado de Joyce e as cores interioranas de Guimarães Rosa. Mas eu bem sei que todo escritor, e há mesmo quem os tenha sob o vórtice do apreço, já que penso nisto em momentos de amargura, está sujeito às críticas rancorosas e enfadonhas, bem como à eterna paixão de todas as pessoas que os têm em mira. Eles passam pelo crivo da imolação, são dígamos, esmorecem e morrem. O nível exato seria, para mim, ressalvando o caso da paixão que é o mais intenso e sincero, manter o fio principal da escuta atenta.

Mas as viagens são como um bálsamo, um vaticínio único, a carga insuperável, ou quase, de explosões catatônicas em nós mesmos. É a medida que nos transporta a vislumbrar, de fora-nuto, os conceitos e categorias da essência do movimento inerente. Se algo não nos afeta, em certos casos, é lógico, torna-se mais fácil manter o fio da escuta atenta.

O Sertão foi a antítese das categorias subjacentes e difusas de meu entendimento, onde o centro é sempre estreme e fecundo de dilúvios os mais sombrios: a cáustica digestão do sol em suas faces. E o movimento é o centro e poucos o perceberam como tal, pois o desvelar é um ato contínuo e incessante de todas as coisas.

Todavia a feira transporta-me a níveis intrigantes e instigantes, apesar de não ser a antítese do sertão, porém se desloca nos contornos da materialidade do desvelar como uma irmã, uma espécie que outorga fins de serenidade peculiar à sua essência plurifásica. em mim o movimento.

Este conto foi escrito em cinco dias. Creio que houve uma catarse interior, bem provável será notificar o retorno à uma serenidade própria que a literatura concede-me. Por ora trata-se mais de uma verificação do que um mero exercício literário. E isto devo à feira, ao torpor ecumênico de sua existência, entendida basicamente como uma inércia moral, às explosões sutis das análises lingüísticas que a mesma fomenta. No dizer de Eggonópoulos, e citado – tão poucos – ( os raros ).

Este conto é a fusão.




II


Houve um tempo em que minha alma regozijava-se facilmente. Agora, imbricada com espelho sinistro que busco verter com ódio para compreendê-la, ela tornou-se distante e pouca, como esta, seca. Outrora era a poesia, com suas mentiras bem disfarçadas, que retinha com acuidade o meu rancor. E, muito antes, em estados de alardes estúpidos e apogeus insidiosos, houve filosófica dedicação ao mundo, bem como uma vertente extirpadora... essa cria de rancores envelhecidos.

Aqui, eu. Caedo senta-se ao meu lado no ônibus. Jezebel deve estar distante, algo que possa – com certeza - . O mercado aproxima-se. Sua silhueta de estanho – inegável. Atropelo roupas nas mulheres com cestas repletas de verduras o verde penetrante do coentro isto do ônibus. Em pleno centro nervoso da burocracia do Estado onde empresas em prédios quase gigantescos elevam suas preces à economia, ao poder público e privado, às legislações tributárias, às imbecilidades impetradas pela União, na avenida principal onde eu e Caedo descemos apressados do ônibus, velhos decrépitos, velhos enrugados, velhos espalham nas calçadas – com uma manta de plástico negro – a feira.

Umbelíferas, Compostas, Solanáceas, Liliáceas, as cores, a anarquia popular frente a si mesmos, diante da compostura decadente de suas misérias. Os gritos, o sol ergue-se virulento, trespassam a multidão – e chegam.

- É melhor cruzarmos agora – Caedo.

Eu sigo.

- Vamos – respondo.

Zunir. muito perto. uma madeixa, penso eu. de repolhos. uma trança de alho dependura-se fielmente na entrada da mulher – sua casa. Aqui não vemos e medimos as coisas, elas pensam e locomovem-se por si mesmas, para si, em si, resolutas evoluem com tranqüilidade ou algazarra. A feira.

A feira é um ser vivo. Nada morto. cada transpiração é indicada por uma cor, um gesto, um grito, e eu a percebo, percebo a evolução drástica da transpiração – basta vê-la – para poucos.

- É naquela rua ali, não? – Caedo. Os andaimes de ferro soerguido do antigo mercado destruído.

- Sim. aquela mesmo – digo. perto da rua.

Dois cantadores, a tradição dos chapéus denota-os. Eles seguem. poucos metros de nós. as violas dependuradas com segurança nos pescoços – trajes. Cuentro, diz. Uma barraca erguida sustentada na matemática do ferro e da madeira, onde cebolas misturam-se com imensos rolos de fumo, o olfato denuncia, distância, é fácil, vergastando o paladar, obliterando meus olhos, perante há de uma saca de urucu – a cor, agora – e pacotes de sena em plásticos transparentes – perante a existência.

Adentrar a feira, no torpor ecumênico de sua existência, é uma tarefa hermenêutica; o trepidar dos passos é ecumênico; a feira é como nenhuma religião e em si mesma é a própria; ecumênicas são as composições truculentas de suas faces, o passo em pressa o diz solenemente, diz também das divisões não expressas, dos arranjos, da beleza elísia do lugar. Adentrar a feira é como em lugar nenhum.

- Olhe a estrutura do mercado! – Caedo.

Sim. a estrutura é a própria forma.

- No retorno – falo.

O relance do vestido florido explica-me que tropecei no pé descalço de emaranhados trança de mulher. A rua é um delineador. é a marca não firmada de limites. casas seculares defloradas pelo lodo impróprio e pelo cinza narcótico dos arredores. janelas mais e mais fotografadas no elevar demudado do mofo entranhado em nossos pulmões e é como coisa alguma. sombras tornam-nas. barracas roçam os edifícios, é de suas essências o escorar. homens por detrás das ervas, cascas das plantas é o que é.

- Aqui – Caedo.

Dobrar e em frente. As primeiras barracas que se perfilam. A dobra foi o impacto verdadeiro. Da cidade meridiana aportamos no fluxo. Por delimitações. Muitas pessoas atravancam-se nas ruas estreitas, bodegas e mercados, nas barracas de ervas.

- Para cálculo – relembro.

- O que é necessário? – Caedo questiona.

- Eu sei o que é – olho em reta desfocada os níveis. as ervas eclodem seus poderes em todas as direções, e é bem mais importante. A feira. A feira delimita-se com a metrópole, apesar de ser ela mesma os recalques. É possível ver os sacos de panos com boldo, erva-doce, camomila, canela e todas as ervas festivas, dizia-o, apenas o gosto. Plaquetas de madeira aceleram as impressões: capim-santo é 200 o mói. É estreita a rua onde empurram. Além, a verdade.

Infinitas propriedades amontoam-se na ordem da mulher por cima da barraca decrépita que aflige a paciência do estranho que não entende as formalizações dos labirintos da feira em partes de ervas e plantas.

- Bom-dia – o sol. A mulher olha-me com indiferença, porém não tanta. Caedo escora-se perto das cascas de imburana-vermelha, acende um cigarro sem muita preocupação: analisa o fósforo e joga-o ao chão e observa.

- A senhora tem espinho-de-cigano? – Da raiz. particularmente – diferir. olho suas roupas, como numa contemplação.

- Claro que tenho, meu fi – remexe as propriedades. Baratas se estremecem e fogem por sobre as ervas. as frestas são seus recantos e lá estão protegidas. O verde próprio e os espinhos pequenos e esbranquiçados que se entramelam nas raízes é a coisa em si. a potência é emergente. Seguro a erva com cuidado para não me furar.

- Me dê um cigarro – estendo a mão livre e Caedo passa-me um cigarro. acendo-o e fito a curandeira: “preciso da casca do jenipapo-brabo”.

O movimento roupas da mulher escusa resmunga quase inaudível onde é que elas estão? Acentua seus olhares e ajeita os óculos na cara suada, pequenas memórias sinalizam – aqui está – ela retorna do amontoado e ergue em arcos com as nuvens a criação de pedaços de cascas amarelecidas.

- Isto é jenipapo. preciso do jenipapo-brabo – retruco. A impressão é imediata e seu semblante é a expressão nítida da compreensão, apesar do deslize que foi temporário ela se debate entre plantas na anatomia interiorana dos retrucados nós das raízes, onde evolar-se é crucial e traz à margem do meu campo de visão as cascas corretas e temos que seguir pois falo em quebra-faca e, um tanto agastado, os limites da espera que é o centro, esmolece e já podemos nos conter.

- Quebra-faca – o amargor me vem à boca. rápida mulher e seguros movimentos. movimentos de pedra. a mulher que cruza – é como Jezebel. perpetuar a mulher que não está ao meu lado. estão de sufixos. a velha é o limite para o êxtase, confunde-se propriamente perto, o mais perto possível da proximidade.

- Aqui - estende. destrinchando com olhos a poeira.

Coloco o pouco dinheiro desguarnecido e fita-me muito por pouco. sinais com as mãos para os lados. persiste fluentemente e a feira está disposta aos nossos desesperos inscientes.

Quenopodiáceas. Labiadas. cruzamos pimentas que denotam e estrangulam o ar com mãos de vermelho. piperáceas. cucubitáceas. manter intacta a região dos lábios – vamos tomar uma cana – Caedo sugerindo. – Certo – o sentido das barracas de cerveja e aguardente é o trajeto das carnes. Tripas e lombos que dão um significado único às ruas. o sangue desmancha-se em pequenos rios nas calçadas. gordo um homem em bigode recolhe pedaços inteiros de carneiros decepados as pernas ergue e coloca ao lado das carnes-de-sol. O sal próprio e acrescenta pimenta aos pés-de-porco, cancioneiro antigo, popular em excesso as tripas de bode e legumes cozidos. – Vamos nos sentar ali – Caedo percebe odores e sentamos onde uma cerveja é colocada. Pedimos charque com macaxeira e os homens se distinguem. podemos falar. quando uma velha, avental manchado de sangue, estraçalha o pescoço de uma galinha branca e respinga sangue em marcas e gritos e o gemido do animal comemos a charque e o aguardente retira a impressão de nojo para seguirmos.

Caedo. chegando na inóspita chuva modorra da tarde. O entardecer são parestesias, os aspectos de uma entrada e solavancos procura o dinheiro nos bolsos e são apenas três cervejas e um pouco de cana.

- O poema divide-se em cenas e atos – Caedo.

- Sim – eu nos limites e incito-o.

- É a última. cena um. pretérito. o encerramento. os olandeses caminham por uma rua silenciosa, yndo à villa de Igarassu. cena dois. É tarde, bem tarde em Olinda. cena três. grandfinale. em Holanda alguém olha uma tela. uma paisagem do Recife – Caedo.

Caminhamos nas modalidades da chuva pretérita. são os olandeses, ele diz. e é bem certo.

Então, ali, naquela tarde oniscilante, que deambulava o dia, como que um espasmo intempestivo, um sentimento de desespero fulminou minha alma; era como toda a indiferença que me perseguia e me colocava distante do mundo, ali, onde a feira demarcava as coisas e era assinalada por elas, eu estagnava-me ante a densidade gordurosa das coisas, a

densidade estúpida e grotescas dos

olhos, e era como isso. E espantei-

me e estava tremendo, uma vez que talvez seja a loucura o homem que nunca se reconcilia com o mundo e pensei na beleza de Jezebel como uma forma de manter-me na superfície, de manter o desespero distante e deixar-me intacto.



III


§ Fechei o livro de Gligoric e abri a carta vinda do México. Arruanjez escrevera-me antes, análises de Watts e Norbenkööld sobre a Amanita Muscaria e as estruturas totêmicas das tribos mexicanas. Arruanjez era um grande amigo e compartilhava de minhas especulações filológicas sobre a feira, bem como era um antropólogo cubano que desistira da ortodoxia metodológica das ciências exatas e humanas e decidira ir ao México estudar as várias formas de Psilocybe e a Amanita Muscaria: “o umbigo do mundo”, numa compreensão e visão do mundo (Weltauschauung) que ele próprio ditava estar aberta a qualquer um. Ele escreveu-me várias anotações, longos textos de estudos orgânicos e psíquicos produzidos em especial pela ingestão da Amanita. Uma carta de trinta e oito páginas, escrita com letra imprecisa, impressionou-me em particular. Arruanjez relatou o seu encontro com dois antropólogos e um xamã que conhecia os processos da Amanita. Os antropólogos, um francês e um indiano, também viajavam pelo mundo em busca de novos sentidos para a antropologia e decidiram ingerir o cogumelo assim como Arruanjez.


§ Acertados os pontos necessários para o ritual, todos ingeriram o líquido contido numa tigela de barro: o chá borbulhante.

§ O francês foi o primeiro a ingerir o líquido, seguido do indiano e do xamã que passou a tigela para Arruanjez que sorveu o líquido defectível com apreensão. Ele crê que o francês foi o primeiro a ser afetado, pois o mesmo começou a gritar e a girar, a face transtornada por algo horrível, depois se sentou e falava aos berros: “Je ne suis pas humain! Je ne suis pas humain!”. Enquanto isso, Arruanjez já começara a perder a noção mais íntima de sua vida e afundava em desespero o mais estranho para ele, descrevendo-me os parâmetros de sua alucinação com a realidade de uma maneira inteligível.

§ A carta terminava com um convite: Arruanjez estaria no Brasil em poucos dias e convidava-me para ingerir a droga. Os trabalhos e os dias estavam para começar, eu bem sabia.



IV

RÁGA : DA INGESTÃO



Natimorto desespero da ingestão da não inalação. Inulto percorre meus sentidos, ó forças que revelam, os navios por detrás da vermivermelha peça silente que estão pertos e devo deitar-me.

Asfixia das essências como categorias das formas das estruturas analisadas e operantes entre as outras estruturas e consigo mesmas enquanto modo operante de ser da substância onde o mundo mesmo ergue a ilusão de uma formalização das categorias, sendo o eixo em que se pensa o estado de coisas como maneira própria de relação, onde a figuração desprende-se da realidade para inserir o em-si como substância objetiva.

Onde estás tu, sentimento destro e incomensurável, que amplias a compreensão e eriges fielmente novas sombras? Sorvo novo gole e não percebo os limites de minha loucura nas casas de tetos negros por meus pensamentos da mulher presente e necessária, numa tragédia conforme, em que tem o centro em toda parte o sentido prisco, inúteis, todos, no divergir de ácio, como complemento, esqueçam essas tolices, apregoa enorme esguelho que não entende, mas na superação.

Conduzo-me como louco, como Gogol e Nassar, nas pequenas cercanias do Recife, perante mercadores de rostos incisos de frondas estranhas para as florestas esfumadas e o xamã está tão próximo que o toco com dedos de aura sinistra para manter o pacto e sentir o fio íntimo que há muito perdi. O burrico está morto de morte inalada e as estradas de Bodocó surgem e não sei ao certo como fui ter-me ali, a guerra prolixa de Bodocó com cangaceiros e o corte da faca está travado e não sairá mais de mim o sabia ao certo como homem e a certeza é tão impotente que giro e falo e Caedo corre como louco e perco sentidos de insolência ante divagações e será sempre como dor orgânica o que me mata todos os dias.



Trabalhos: densa, densa, densa, contornei a igreja e são arcos de geometria e de ângulos aglomerados, sólidos e quase perfeitos. vazias ao lado dos cartazes as janelas da realidade concretiva que absorve e Arruanjez incita pânico. latinos de olhos sobranceiros.



Dias :De soturno esbraveja quase longo para seus sorrisos acolhedores, meu telegrama esquálido desjejum, esvoejante, é verdade, vértebras peitorais na idiotice acumulada, história para meninas, reclama eufônico, não, exclama involuntário, desdém como provável solução, nos dizeres mais antigos dos trabalhos.



RÁGA : DA LUCIDEZ


Arruanjez e Caedo. Jezebel ficou na minha casa na parte velha do Recife. Espalmei minhas mãos em suas pernas e percebi o sol fortificando os calçamentos e os tetos das construções seculares. para o México, disse-me Caedo. Agora, quando sinto a densidade quieta e macia de Jezebel, pressinto a distância do desespero e da loucura. Peguei uma xícara de café e acendi um cigarro enquanto Jezebel recostava-se em linha correta perante o sol.

- Eles devem ter chegado agora – Jezebel revira os olhos ao falar e é como um bem-estar inigualável a presença.

- Sim, devem ter chegado.

- O que você vai fazer?

Demarcar forças e reuni-las, pensei.

Homens em trajes de manga descarregavam caixotes. A calmaria involuntária da rua deixou-me tranqüilo e pensei nos dias, na solução que sempre me escapava e tocá-la foi como o traço perfeito da minha vida. Jezebel estava linda, a solução pacificara meus lamentos, as sombras de pavor esvoaçavam sem sentido e o vigor do entendimento é a essência para minha compreensão. homens descarregavam caixotes, Jezebel contempla os desenhos da escala solar, as ruas afugentam os dilúvios. Não como forma de desespero ou tédio, porém a marca infindável de minha obstinação pela cura. Este conto é a fusão.



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